Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco
(a água é sempre azul
e sempre fresca)
Em que país encontraria
um emprego e esquecimento
em que país encontraria
amor e compreensão
Em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte
Não respondem as gaivotas
porque voam
Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco
António Reis - Poemas Quotidianos, pág. 22, Porto, [1957].
sábado, 13 de junho de 2020
segunda-feira, 8 de junho de 2020
O Espelho
Ontem fiquei esperando desde manhã,
Eles sabiam que não virias, eles adivinhavam. Lembras como o dia estava lindo?
Um feriado! Eu não precisava de casaco.
Você veio hoje, e aconteceu
Que o dia foi cinzento, sombrio,
E chovia, e era meio tarde,
E ramos frios com gotas escorrendo.
Palavras não podem consolar, nem lenços enxugar.
Arseni Tarkovski
Eles sabiam que não virias, eles adivinhavam. Lembras como o dia estava lindo?
Um feriado! Eu não precisava de casaco.
Você veio hoje, e aconteceu
Que o dia foi cinzento, sombrio,
E chovia, e era meio tarde,
E ramos frios com gotas escorrendo.
Palavras não podem consolar, nem lenços enxugar.
Arseni Tarkovski
terça-feira, 2 de junho de 2020
Estações
Velhinhos se amam jovens nas fotografias.
Os moços projetam roteiros definitivos.
O menino quer crescer pra fazer as coisas.
O madurão avalia se o futuro salda o passado.
Os moços projetam roteiros definitivos.
O menino quer crescer pra fazer as coisas.
O madurão avalia se o futuro salda o passado.
As folhas da árvore voam conforme o vento.
A tartaruga ganhou casco para não voar.
Os óculos que enxergam longe cegam de perto.
Os deuses bocejantes jogam cartas no Olimpo.
Raras vezes, amor, o tempo agrada o corpo.
A tartaruga ganhou casco para não voar.
Os óculos que enxergam longe cegam de perto.
Os deuses bocejantes jogam cartas no Olimpo.
Raras vezes, amor, o tempo agrada o corpo.
Alcides Villaça
sábado, 23 de maio de 2020
Sobre o Mundo
O telescópio não alcança sequer a tua alma;
Imprecisão exacta de um instrumento instintivo.
Mas repara: não há instrumentos instintivos ou máquinas
espontâneas.
Dois terços do amor estão na mulher, qualquer
que seja o casal. As evidências abrem falência
em todas as áreas; com o machado homens robustos inventam
ciências viris. Indispensáveis, de facto:
ciências meigas já existem em número
excessivo. Monumentos que ocupam
quilómetros quadrados são explicados por uma equação de
dois centímetros. Repara: a engenharia é a invenção que engordou
as equações matemáticas. Atirou-as para o Mundo.
Vê as águas, a sabedoria discreta: ninguém
constrói uma torre de observação no centro
do mar. As águas não se bebem
por inteiro, e nem toda a água é doméstica. O mar não tem
diminutivos. Uma onda não o é.
Nem o peixe.
Ciências que estudem seriamente o riso
não existem; os cientistas
colocam fórmulas em tabelas: têm gráficos complexos
que explicam a simplicidade
do Mundo. Felizmente, fomos salvos
pelo coração.
Certos órgãos ficaram reféns dos profetas
antigos, e as noites passam-se melhor assim.
Indecisões desconcertantes permitem reinventar a
monotonia: Trago-te uma monotonia surpreendente, alguém diz.
Animais mitológicos bebem água no nada,
e mesmo assim crescem; têm células resistentes.
Outros animais mais longos e espessos, mamíferos
de grande porte por exemplo, evaporam a 36°, reaparecendo
não carnívora. O mundo muda,
Não pense que não. Nem os mamíferos são eternos.
No aeródromo, por exemplo, o poema atravanca o caminho
de descolagem
do avião de um
País pouco habituado a máquinas que subam mais
alto que um banco de cozinha. O mundo
não é injusto, mas também não é teu mordomo;
Avança e é só.
Imprecisão exacta de um instrumento instintivo.
Mas repara: não há instrumentos instintivos ou máquinas
espontâneas.
Dois terços do amor estão na mulher, qualquer
que seja o casal. As evidências abrem falência
em todas as áreas; com o machado homens robustos inventam
ciências viris. Indispensáveis, de facto:
ciências meigas já existem em número
excessivo. Monumentos que ocupam
quilómetros quadrados são explicados por uma equação de
dois centímetros. Repara: a engenharia é a invenção que engordou
as equações matemáticas. Atirou-as para o Mundo.
Vê as águas, a sabedoria discreta: ninguém
constrói uma torre de observação no centro
do mar. As águas não se bebem
por inteiro, e nem toda a água é doméstica. O mar não tem
diminutivos. Uma onda não o é.
Nem o peixe.
Ciências que estudem seriamente o riso
não existem; os cientistas
colocam fórmulas em tabelas: têm gráficos complexos
que explicam a simplicidade
do Mundo. Felizmente, fomos salvos
pelo coração.
Certos órgãos ficaram reféns dos profetas
antigos, e as noites passam-se melhor assim.
Indecisões desconcertantes permitem reinventar a
monotonia: Trago-te uma monotonia surpreendente, alguém diz.
Animais mitológicos bebem água no nada,
e mesmo assim crescem; têm células resistentes.
Outros animais mais longos e espessos, mamíferos
de grande porte por exemplo, evaporam a 36°, reaparecendo
não carnívora. O mundo muda,
Não pense que não. Nem os mamíferos são eternos.
No aeródromo, por exemplo, o poema atravanca o caminho
de descolagem
do avião de um
País pouco habituado a máquinas que subam mais
alto que um banco de cozinha. O mundo
não é injusto, mas também não é teu mordomo;
Avança e é só.
Gonçalo M. Tavares
sexta-feira, 15 de maio de 2020
O LIVRO
Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria. Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, senão estou perdido. No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa salvar-se.
Comprei um livro de filosofia. Filosofia é a ciência que trata da vida; era justamente do que eu necessitava — pôr ciência na minha vida. Li o livro de filosofia, não ganhei nada, Mãe! não ganhei nada. Disseram-me que era necessário estar já iniciado, ora eu só tenho uma iniciação, é esta de ter sido posto neste mundo à imagem e semelhança de Deus. Não basta?
Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há! Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.
Não achas, Mãe? Por exemplo. Há um cão vadio, sujo e com fome, cuida-se deste cão e ele deixa de ser vadio, deixa de estar sujo e deixa de ter fome. Até as crianças já lhe fazem festas. Cuidaram do cão porque o cão não sabe cuidar de si — não saber cuidar de si é ser cão. Ora eu não queria que cuidassem de mim, mas gostava que me ajudassem, para eu não estar assim, para que fosse eu o dono de mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si!
Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: Olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!
Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e nenhuma era para copiar. Como o livro, as pessoas tinham principio, meio e fim. A principio o livro chamava-me, no meio o livro deu-me a mão, no fim fiquei com a mão suada do livro de me ter estendido a mão. Talvez que nos outros livros… mas os títulos dos livros são como os nomes das pessoas–não quer dizer nada, é só para não se confundir…
Na montra estava um livro chamado «O lial conselheiro». Escrito antigamente por um Rei dos Portuguezes! Escrito de uma só maneira para todas as especies de seus vassalos! Bemdito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quere que eu seja Mestre! Eu acho que todos os livros deviam chamar-se assim: «O lial conselheiro»! Não achas, Mãe?
O Mestre escreveu o que sabia–por isso ele foi Mestre. As palavras tornaram presentes como o Mestre fazia atenção. Estas palavras ficaram escritas por causa dos outros também Os outros aprendiam a ler para chegarem a Mestres–era com esta intenção que se aprendia a ler antigamente.
Sonhei com um paíz onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha á escuta do universo; em seguida, fabricava desde a matéria prima o papel onde ia assentando as confidencias que recebia directamente do universo; depois, descia até ao fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chócos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da arvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.
Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa–salvar a humanidade.
- O pequeno é como o grande.
- O que é que está em cima é análogo ao que está em baixo.
- O interior é como o exterior das coisas.
- Tudo está em tudo.
José de Almada Negreiros, A invenção do Dia Claro
terça-feira, 12 de maio de 2020
Artéria, tu tens razão
A única coisa que eu aprendi meu Deus
a sofrer a desilusão duma passagem de rua
ficar com o lado esquerdo a ajudar a falar
mas a única coisa que eu aprendi
Que um bocado de vidro inundasse de luz uma artéria
eu era um bocado de vidro que não inundasse de luz
artéria nenhuma
era uma desilusão a olhar para mim
e dizer movimento de rua
é assim movimento de rua
aí está nós cá estamos nós somos tal e qual
uma desilusão em passagem.
Tinha era ainda mais que tudo isso
um inchaço dum vidro em bocado
espetado em cima de pedra.
Havia um estendal de desilusão a devorar-me
todo com os olhos
eu era uma continuação do meu ser.
Onde um simulacro estava a vantagem
de uma desilusão.
Eu não
eu cá.
Que um cá estamos considerasse ou não
eu não tinha nada com isso
Eu fum, eu...
Ah,
Havia é que era eu cá estamos nada disso
eu cá não eu nada eu não tinha eu não tenho
tu quê
nós consideramos.
Onde punha fum
tudo por dentro era duma urania
tudo por dentro era duma constipação palpável
pelo sentido da pedra e do bocado de vidro.
Não eu cá não vou.
Quem olha descontenta.
António Gancho
a sofrer a desilusão duma passagem de rua
ficar com o lado esquerdo a ajudar a falar
mas a única coisa que eu aprendi
Que um bocado de vidro inundasse de luz uma artéria
eu era um bocado de vidro que não inundasse de luz
artéria nenhuma
era uma desilusão a olhar para mim
e dizer movimento de rua
é assim movimento de rua
aí está nós cá estamos nós somos tal e qual
uma desilusão em passagem.
Tinha era ainda mais que tudo isso
um inchaço dum vidro em bocado
espetado em cima de pedra.
Havia um estendal de desilusão a devorar-me
todo com os olhos
eu era uma continuação do meu ser.
Onde um simulacro estava a vantagem
de uma desilusão.
Eu não
eu cá.
Que um cá estamos considerasse ou não
eu não tinha nada com isso
Eu fum, eu...
Ah,
Havia é que era eu cá estamos nada disso
eu cá não eu nada eu não tinha eu não tenho
tu quê
nós consideramos.
Onde punha fum
tudo por dentro era duma urania
tudo por dentro era duma constipação palpável
pelo sentido da pedra e do bocado de vidro.
Não eu cá não vou.
Quem olha descontenta.
António Gancho
quinta-feira, 7 de maio de 2020
memórias
É o tema das visões e das vozes, um pouco ameaçador agora quando se lembra aquilo por que se passou. Era o costume das infâncias: viam-se faiscar os rostos, súbitos como pedrarias nos quartos obscuros, assemelhavam-se a alvéolos de colmeias uns sobre os outros. Na cama, escutava-se um clamor, os melhores instantes concentravam-se ali, que apuramento de palavras, de frases, de anúncios, e aquilo ascendia no silêncio, era a nossa música que se compunha, e em baixo mas inteiro nos dons, em estado de graça, respirávamos temerariamente. Estávamos atentos às matérias e sopros do mundo expressos em imagens e vozes autónomas. Nem sequer nos apercebíamos bem de que as noites separavam os dias: era verão. O espaço, os encontros, as caras, o cabelo das mulheres, roupas estendidas a suar, o vento amplo, grandes pedras, grandes girassóis, a fruta amarela, os bichos. Crescíamos no meio do atordoamento de flores e animais, crescíamos assim. Uma noite acordei com o som dos meus próprios gritos. (...) Era a ordem ininterrupta das magias: à meia noite de sábado cravava-se uma faca no tronco das bananeiras, ia-se ver logo pela manhã, a seiva ácida deixara enigmáticas figuras na lâmina, decifrávamos, tínhamos inspirações, revelações: um cavalo, uma águia, um tigre, uma cobra, um leão. As bananeiras gemiam de noite: a sua carne rasgava-se por uma força que vinha de dentro, e das feridas brotavam os rebentos: cachos, frutas de ouro.
(...)
(em Servidões de Hérberto Hélder)
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