quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Moses Herzog

Se estou louco, tudo bem para mim, pensou Moses Herzog. Algumas pessoas achavam que ele não estava a regular bem e por um tempo ele mesmo tinha questionado a sua sanidade. Mas agora, embora continuasse a comportar-se de forma estranha, sentia-se confiante, animado, clarividente, forte. Em estado de graça, estava a escrever cartas para toda a gente sob o sol. Estava tão agitado por essas cartas que, desde o final de Junho, ia de um sítio para outro com uma valise cheia de papéis. Tinha carregado essa valise de Nova York a Martha's Vineyard, mas voltara a Vineyard imediatamente; dois dias depois voou para Chicago, e de Chicago foi para um vilarejo no oeste de Massachusetts. Escondido no campo, escreveu incessantemente, fanaticamente, aos jornais, a pessoas da vida pública, a amigos e parentes e, por último, para os mortos, para os seus próprios mortos obscuros e finamente para os mortos famosos.


Início de "Herzog" de Saul Bellow

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

CANTO NONO

Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada
pelas raízes das ervas
chegou à biblioteca banhando as palavras santas
guardadas no convento.

Quando tornou o bom tempo,
Sajat-Novà o frade mais jovem
levou os livros todos por uma escada até ao telhado
e abriu-os ao sol para que o ar quente
enxugasse o papel molhado.

Um mês de boa estação passou
e o frade de joelhos no claustro
esperava dos livros um sinal de vida.
Uma manhã finalmente as páginas começaram
a ondular ligeiras no sopro do vento
parecia que tinha chegado um enxame aos telhados
e ele chorava porque os livros falavam.


Tonino Guerra, in O Mel, Assírio e Alvim, Lisboa 2004

sábado, 6 de fevereiro de 2021

A simplicidade é a ponta de um iceberg.
O que está por baixo e que não se vê é que é
o verdadeiro e estende-se muito, até muito longe.
Por isso é que o que é simples tem mais peso.

Marie Louise Fleisser (?)

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou para tantas precisões.

Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!

A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta...
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.

Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.

Manuel Resende, O Mundo Clamoroso Ainda.

terça-feira, 23 de junho de 2020

INTERVALO

No silêncio que guardo
quando partes

que escondes sob os
dedos

que se prende
que me deixa no corpo
este calor
da falta do teu corpo como sempre


Maria Teresa Horta

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Poemas Quotidianos

50.

Não é nas mãos
que desespero

As minhas mãos
só trabalham
e adormecem

esfriam
ou arrefecem

Não desmaiam
nem têm rios

Têm ossos
músculos
e sangue

poros também
por onde transpiro

mais nada têm

António Reis – Poemas Quotidianos

domingo, 14 de junho de 2020

para hoje

Ofereci-te tanta coisa. A mais preciosa, aquela que há muitos anos não dava a ninguém - a mais preciosa, repito, foi a minha absoluta disponibilidade para estar contigo, ouvir-te, ou estar em silêncio perto de ti.”
Al Berto
in "Diários"