terça-feira, 31 de outubro de 2017

Segredo

A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

sobre as desilusões

A gente fez pouco.
A gente era mais.

A gente tinha que ter feito mais.

A gente tinha que ter viajado mais.
A gente tinha que ter ido até ao Pantanal.
A gente tinha de ter visto a Bolívia.
A gente tinha que ter filmado a Bolívia.

A gente tinha que ter transado na neve, 
transado de novo debaixo da lua cheia, 
com as ondas do mar a rolarem 
por baixo de nossos corpos.

Transado na nossa cama com a chuva lá fora.
A gente tinha a nossa cama.
Sabia?

A gente não vai transar nunca mais. 
A gente não vai se beijar nunca mais.
Sabia?

A gente tinha de ter transado mais.
Mais devagar. Mais rápido. Mais silencioso.
Mais amoroso. Menos amoroso.
A gente tinha de ter aprendido nosso beijo.

A gente tinha que ter feito filme.
A gente tinha que ter feito filho.

A gente tinha que ter dado mais a mão, 
mais o braço, mais abraço.

A gente tinha que ter-se ouvido mais.
A gente tinha de ter tido mais calma,
mais calmos, mais diálogos, menos egoísmo.

A gente tinha que ter saído de nós, 
com nós ainda dentro.

A gente tinha que ter sido mais certo.
A gente tinha que se ter magoado menos.

Você não poderia ter ido embora assim.
Você não poderia ter abandonado tudo de nós.
Você não poderia me ter substituído e 
impossibilitado todas as nossas possibilidades futuras.

Você não poderia ter perdido a consideração por mim,
não poderia ter perdido a consideração por nós.

Para quê?
Em nome de quê?
Me dê a mão.
Me dá a mão. 
Mas agora não.
Agora não.

Agora
tudo está morto.
Nosso futuro está morto.
Nosso passado é uma coisa que não sei.
E nosso presente simplesmente não existe.

Não existe.

A gente fez pouco.
A gente era mais.
​E eu te amei tanto.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017




Milla, 17 anos, e Leo, não muitos mais, refugiam-se numa pequena cidade no Canal da Mancha. Viver um amor. Inventar uma vida e agarrá-la, custe o que custar e apesar de tudo.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

COMO SE DESENHA UMA CASA

Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim imprudente,
a mãe para sempre morta.

Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.

Protege-te delas, das recordações,
dos seus sócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstração e sem um plano rigoroso. 

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Já não te amo como no primeiro dia.

Já não te amo como no primeiro dia.
Já não te amo.
No entanto continuam em volta dos teus olhos, sempre, estas imensidades que rodeiam o olhar e esta existência que te anima no sono. Continua também esta exaltação que me vem por não saber o que fazer disto, deste conhecimento que tenho dos teus olhos, das imensidades que os teus olhos exploram, por não saber o que escrever sobre isso, o que dizer, e o que mostrar da sua insignificância original. Disso, sei apenas o seguinte: que já não posso fazer nada a não ser suportar esta exaltação a propósito de alguém que estava ali, de alguém que não sabia que vivia e de quem eu não sabia que vivia, de alguém que não sabia viver dizia-te eu, e de mim que o sabia e que não sabia que fazer disso, desse conhecimento da vida que ele vivia, e que também não sabia que fazer de mim.
Dizem que o tempo do pleno verão já se anuncia, é possível. Não sei. Que as rosas já ali estão, no fundo do parque. Que às vezes não são vistas por ninguém durante o tempo da sua vida e que ficam assim ali no seu perfume esquartejadas durante alguns dias e que depois se deixam cair.
Nunca vistas por esta mulher solitária que esquece. Nunca vistas por mim, morrem. Estou num amor entre viver e morrer. É através desta ausência do teu sentimento que reencontro a tua qualidade, essa, precisamente, de me agradares. Penso que apenas me interessa que a vida não te deixe, outra coisa não, o desenvolvimento da tua vida deixa-me indiferente, não pode ensinar-me nada sobre ti, só pode tornar-me a morte mais próxima, mais admissível, sim, desejável. É assim que permaneces face a mim, na doçura, numa provocação constante, inocente, impenetrável.
E tu não sabes.

marguerite duras

segunda-feira, 17 de julho de 2017

CARTA DE HILDA HILST PARA ANTONIO NAUD JÚNIOR

Você me fala do teu poço, Naud, meu baiano bonito, o poço há de ser sempre, às vezes com água mais clarinha, outras vezes com lama, bosta etc. Todos nós que escrevemos somos, queiram os outros ou não, diferentes mesmo, não há jeito. Eu sei que nada tenho a ver com as bestas-feras que habitam o planeta, acho mesmo que somos totalmente diversos, o olho vê mais fundo, a comoção é intensa, maior, fulgurante, tudo nos toca nos comove, nos mata nos aterroriza, o planeta Terra é muito bonito mas ficará amerdalhado totalmente logo mais, tenho profundo desprezo pelos homens políticos de agora de sempre, são todos uns filhos da maior puta, e nós nas mãos deles, cago para todo o Sistema de bosta, pra tudo, não desejo coisas além da solidão muito grande, só aqueles que fazem parte da minha família, isto é os escritores, os de intensidade verdadeira, os que sofrem de piedade e compaixão, as vezes penso que não vou agüentar continuar a existir vendo tanta crueldade, tanto horror. Também meu poço existe, também não tenho nada a ver com cidades, as vezes vou para SP para lançar um livro, como você sabe, chego lá tomo mil porres, ninguém tem nada a dizer, é a mesma baboseira de todos. Naud, nós todos temos problemas, saiba viver com os seus, te foi dado essa coisa tão difícil que é o ato de escrever, o sentir agudo o talento, você é um escritor e pronto, arranje um trabalho de bosta qualquer, meio período, mude-se para um pequeno lugar, você não é casado, não tem filhos para sustentar, escolha o lugar onde quer morar, arranje umas colaborações em revistas jornais, escolha a tua própria vida, faça a sua própria vida...

(25 de dezembro de 1990)

sexta-feira, 14 de julho de 2017

sem essa

Olha, não é nada disso
Embora eu não saiba dizer mais nada
Mas nada além das coisas
Que sempre ficaram caladas
Olha, não é nada disso
É fácil entender
Ele só veio para me dizer adeus
Mas o que eu queria mesmo
Era não ter mais medo de me comover
Mesmo assim fiquei pensando
Que a gente podia viajar
E fazer um álbum de fotografias
Pra depois queimar, lembrar, queimar
Tudo ta indo tão depressa
E não tem mesmo outro jeito
Mas quanto ao resto, não, não
Não é nada disso
Embora eu não saiba dizer mais nada

Jards Macalé