terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A Cela

A Cela é uma aldeia na Galiza quase desaparecida da face da terra com um casal, Júlio e Dourinda, numa tarde sem pretensões e a montanha bem perto. 
Moram quatro famílias na aldeia. Metade ainda está de pé, mas a outra, onde estavam a vida, os homens e os animais, ficou toda encerrada dentro das memórias.
Um rapaz e uma rapariga, que passeavam a ver as pedras sobre as pedras, chegaram ao meio daquele silêncio para tentar ler o que estava escrito no ar. O tempo tinha devorado até as datas. Só ficaram ervas, pedras e um casal quase abandonado pelos ossos e pelos nomes.
E o rapaz e a rapariga escreveram qualquer coisa com um prego bem forte, sobre aquele lugar, como se quisessem ficar lá dentro gravados pelo tempo.




quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

A Ilusão do Migrante

Quando vim da minha terra,

se é que vim da minha terra

(não estou morto por lá?),

a correnteza do rio

me susurrou vagamente

que eu havia de quedar

lá donde me despedia.

Os morros, empalidecidos

no entrecerrar-se da tarde,

pareciam me dizer

que não se pode voltar,

porque tudo é conseqüência

de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim

de algum para outro lugar,

o mundo girava, alheio

à minha baça pessoa,

e no seu giro entrevi

que não se vai nem se volta

de sítio algum a nenhum.

Que carregamos as coisas,

moldura da nossa vida,

rígida cerca de arame,

na mais anônima célula,

e um chão, um riso, uma voz

ressoam incessantemente

em nossas fundas paredes.

Novas coisas, sucedendo-se,

iludem a nossa fome

de primitivo alimento.

As descobertas são máscaras

do mais obscuro real,

essa ferida alastrada

na pele de nossas almas.

Quando vim da minha terra,

não vim, perdi-me no espaço,

na ilusão de ter saído.

Ai de mim, nunca saí.

Lá estou eu, enterrado

por baixo de falas mansas,

por baixo de negras sombras,

por baixo de lavras de ouro,

por baixo de gerações,

por baixo, eu sei, de mim mesmo,

este vivente enganado,

enganoso.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Que mais há a dizer?
















Esta foto da visita da família Trump ao Vaticano diz tudo: um sorriso encadeado pelo poder, duas mulheres empalhadas, um anfitrião desolado. 

terça-feira, 28 de novembro de 2017

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A minha árvore da cinefilia - ou os sussurros fora de quadro

Foi no tempo em que os animais falavam e eu ainda dormia num quarto alcatifado.
Lá em casa éramos quatro, pessoas quero dizer, mas nessa manhã o meu pai não estava em casa. Eu, ainda deitada na cama, ouvia o meu irmão e a minha mãe a falarem em sussurro fora do quarto. 

Até hoje me pergunto sobre o que falariam. Nunca soube. Mas a sonoridade do sussurro me marcou, no que diz respeito às raízes da minha cinefilia, digo. Eu não sabia, mas era ali que começava a força sonora das imagens dentro da minha cabeça. Ainda hoje fecho os olhos e quase sinto o que senti naquela manhã. Consigo até ver a imagem da cena e o curioso é que não a vejo com um olhar subjetivo. Eu me vejo a mim, deitada, ouvindo os sussurros fora de quadro. É um terceiro olhar que vê a cena. A minha câmera se posiciona fora de mim. Mas isso, eu só soube anos mais tarde. Ali, naquele momento, eu estava só a ser marcada sonoramente por uma cena, um sentimento, um sussurro. 

Os meus pais eram muito cinéfilos, embora eu ache que eles não o soubessem. Todos os domingos eles iam ao cinema e eu ficava com o meu irmão. Na verdade, o meu pai tornou-se cinéfilo quando conheceu a minha mãe. Antes disso não. Antes disso eu nem sei. Não sei do meu pai antes da minha mãe. Mas a minha mãe ia ao Cinema Paris na Domingos Sequeira. Chegava a fazer sessões triplas e até hoje fala dos filmes italianos e franceses que via no fim da década de 60, inicio da década de 70. O engraçado é que a minha mãe fala dos filmes "com" e não dos filmes "de". Tanto que ela sabe muito mais os nomes dos atores do que dos realizadores. Filmes com a Natalie Wood, com a Elizabeth Taylor, com o Paul Newman, que ela tanto gostava.

Depois desse meu primeiro momento cinéfilo interno vieram os momentos cinéfilos propriamente ditos. Os clássicos da Disney, A Música no Coração, Uma Leoa Chamada Elsa (eu avisei que estávamos na época em que os animais falavam). A ida ao cinema foi sempre um acontecimento celebrado com entusiasmo e com o tempo passou a ser cada vez mais frequente. Não consigo lembrar-me muito bem dessas experiências iniciais: como por exemplo, o primeiro filme que vi no cinema. Lembro-me antes quando o cinema me tocou pela primeira vez, e foi por causa da minha mãe. Ela mostrou-me O Esplendor na Relva. Eu já era um pouco mais velha. O filme sempre me acompanhou e fui entendendo-o aos poucos, e de forma diferente, conforme os anos passaram. E o poema final, em sussurro, com a Natalie Wood em primeiro plano (... we will grieve not, rather find strength in what remains behind...), não há um ano que eu não o reveja e não me emocione.

Depois vieram os meus anos de sessão tripla no Monumental ou no King. A partir de 2003 "inventaram" um cartão (Medeia Card) que oferecia a possibilidade de ir ao cinema ver qualquer filme por apenas 15 euros mensais. Como na altura eu tinha um namorado e uma melhor amiga que muito se entusiasmavam com a ideia do cartão, ficou fácil ter visto quase todos os filmes em cartaz entre 2003 e 2010. 

Anos mais tarde, um amigo mostrou-me Victor Erice. E foi ai que eu percebi que eu tinha de fazer cinema. Foi ai, no primeiro plano do El Sur, quando ele nos mostra uma menina na cama, de manhã, acordada escutando os sussurros do pai e da mãe fora de quadro que eu me lembrei do momento sonoro que me marcou desde criança e pensei: a câmera, o terceiro olhar, o som, o sentimento, o sentido. 

A minha cinefilia começou e recomeçou muitas vezes. Quase sempre com uma menina/mulher e vários tipos de sussurro fora de campo.

El Sur, Victor Erice (1983)