quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O verdadeiro anarquismo

Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência. Levamos a disciplina social àquele ponto de excesso em que coisa nenhuma, por boa que seja - e eu não creio que a disciplina seja boa -, por força que há-de ser prejudicial.

Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais. Nunca o português tem uma acção sua, quebrando com o meio, virando as costas aos vizinhos. Age sempre em grupo, sente sempre em grupo, pensa sempre em grupo. Está sempre à espera dos outros para tudo. E quando, por milagre de desnacionalização temporária, pratica a traição à Pátria de ter um gesto, um pensamento, ou um sentimento independente, a sua audácia nunca é completa, porque não tira os olhos dos outros, nem a sua atenção da sua crítica. (...)

Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos tido, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido... Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral.

Trabalhemos ao menos - nós, os novos - por perturbar as almas, por desorientar os espíritos. Cultivemos, em nós próprios, a desintegração mental como uma flor de preço. Construamos uma anarquia portuguesa. Escrupulizemos no doentio e do dissolvente. E a nossa missão, a par de ser a mais civilizada e a mais moderna, será também a mais moral e a mais patriótica.

Fernando Pessoa, "Crónica da Vida Que Passa II" in O Jornal, 8 de Abril de 1915

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