caro colega, vou ser breve.
Poupar-vos-ei o relato atribulado em que, por circunstâncias meramente fortuitas e inesperadas, me tornei geladeiro e, pouco a pouco, me fui devotando ao meu ofício. Sou um homem de paz. Podia, quem sabe, ser um criminoso, um proscrito, em permanente rebelião contra uma lei social cega e aberrante. Não sei.
Sei que nunca poderia ser político, engrossar o cortejo dessa corja que põe e dispõe do ser humano, guiando-o para um devir cada vez mais favorável à condição de rastejante. “- És réptil e em réptil te tornarás” é a lógica que forma incansavelmente a nossa vergonhosa degradação enquanto indivíduos, enquanto espécie.
Contra a trapaça universal os gelados enregelados, o meu gelado, que leva em si toda a energia calórica do mundo, uma palavra amiga, uma prova de amor. Rigor e fantasia.
O último luxo soberano de um homem livre que teve a suprema ousadia de, no país dos gatos pingados, exaltar a vida. Não tenho receitas, fórmulas mágicas.
Cada gelado que fabrico tem um perfume que lhe é próprio - o seu perfume. Nunca é semelhante ao anterior, nunca será igual ao que lhe sucede. Cada um tem, no entanto, algo para recordar: uma viagem, um passeio, um encontro, um ente querido, a mulher amada…
O meu sonho, talvez irrealizável, é fabricar um perfume que concentre em si todos os perfumes, harmoniozamente chegar-me a Deus, à quintessência dos perfumes.
Não atraiçoem nunca os sonhos da vossa infância.
Se abrirdes os vossos corações talvez possamos provar o glorioso gelado final.”
in “A Comédia de Deus” (1995) de João César Monteiro
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