quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A Miserável Riqueza


Aqui ao lado há um texto sobre a pobreza. Acrescentemos-lhe como complemento necessário algumas considerações sobre a riqueza. Só a partir do momento em que a pobreza se tornou uma noção exclusivamente económica é que se passou a opor, sem qualquer desvio, à riqueza. O conceito de pobreza teve uma amplitude metafísica, hoje perdida, que encontramos nos grandes místicos (por exemplo, no mestre Eckhart) e em Espinosa, que nos fala da potentia da pobreza. Nesta aceção, vinda das ordens religiosas, os pobres viviam da sua própria riqueza, da sua perfeição intrínseca. E que riqueza era essa? A autonomia total, a força imensa de quem não tem nada e não quer nada e, por isso, escapa à apropriação e à lógica da propriedade. Assim entendida, a pobreza não se opõe à riqueza, mas à miséria. Quando, porém, a pobreza se tornou uma noção económica, passou a designar apenas o polo negativo da riqueza. E esta ficou exclusivamente associada à vida burguesa que simula uma falsa plenitude. Porquê?

A pobreza era dona do tempo (ele era a única coisa de que as ordens monásticas se apropriavam), mas os ricos burgueses são hoje, por definição, consumidores de tempo que falta. Consomem dinheiro, muito dinheiro, e como é sabido a regra a que obedecem é exatamente oposta à das regras monásticas. É a regra que diz: “Tempo é dinheiro.” Nesta condição, não há tempo que chegue, porque o dinheiro só é vivo se não parar a sua circulação e acumulação. E, na medida em que só conhece o valor de troca, a forma moderna de riqueza eliminou o valor de uso. Os ricos de hoje não possuem uma riqueza, mas são possuídos por ela. Nada ilustra melhor esta situação do que o capitalista que é um assalariado da sua própria empresa, com horário de trabalho e gabinete de trabalho com vista para a miséria do mundo que é o microcosmos empresarial.

António Guerreiro, "Ao pé da letra", Expresso-Atual, Portugal

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