quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

sobre os tempos - fundamentalismos


Gosto particularmente do que diz uma personagem de Hans Christian Andersen: Pediram-lhe para rezar, mas ele só se lembrava da tabuada.

Dois tipos de fundamentalistas:

1. O fundamentalista da lógica pura: pediram-me bondade, mas eu só me lembrava da tabuada; pediram-me sabedoria, mas eu só me lembrava da tabuada, etc.

2. O fundamentalista religioso: pediram-lhe a tabuada, mas ele so se lembrava de rezar. 


Há muito que a Europa se instalou na tabuada. Por cima do mapa do Continente poderíamos escrever simbolicamente
2x3=6
ou a tabuada inteira, mas cometeríamos um sacrilégio se escrevêssemos uma oração, por exemplo, Pai nosso que estais no Céu, Santificado seja o Vosso nome.

O sacrilégio mudou de objecto.
Na Europa, em 2013, o discurso religioso que conteste uma adição ou uma multiplicação será apedrejado.

O cineasta Herzog lembra que, num dos seus filmes rodado em África, elementos da tribo massai não quiseram entrar num posto médico móvel porque este estava elevado em relação ao chão. Por razões misteriosas, não se atrevem a subir os degraus. Tentam entrar, hesitam e recuam. Só no final é que alguns massais conseguem ultrapassar esse obstáculo invisível e subir os três degraus que conduzem ao seu interior.

A Europa, de uma forma geral, está assim. Não sobe os degraus; tem medo das alturas, da pequena altitude que esses pequenos degraus inauguram. Com os pés no chão ou em queda (sem chão por baixo): eis como se sente segura a Europa.
O rapaz não ousa olhar-se no escuro, / mas sabe bem que deve afogar-se no sol / e habituar-se aos olhares do céu, para se fazer um homem - Cesare Pavese.

Gonçalo M. Tavares in Jornal Público (03.01.2013)

Sem comentários:

Enviar um comentário