quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O Arquitecto Cineasta


Eu assumo o desafio de descobrir o escondido, o não revelado, o não percebido nos objectos aparentemente unidimensionais ou com uma única valência.

Esse é todo o projecto da humanidade. Significar não só o insignificado como o insignificável, especialmente o discurso artístico, o discurso poético. A arquitectura carrega muito a memória daquilo que nunca vimos. Pressupõe, portanto, um modo de olhar que, embora adquirido, nos acaba por ser tão próprio como o faro é para os cães.

Manuel Vicente 


sábado, 4 de agosto de 2012

Comédia Fantasma

(...)
Às vezes, porém, a vida parece-nos uma comédia fantasma. Como tirados de um sonho, olhamos os outros agir e, gelados ao verificarmos o dispêndio vital requerido pela manutenção dos nossos requistos primitivos, perguntamos com espanto o que restou da Arte. O nosso frenesi de caretas e olhadelas parece-nos de repente o cúmulo da insignificância, o nosso pequeno ninho tão macio, fruto de um endividamento de vinte anos, parece um inútil costume bárbaro, e a nossa posição na escala social, tão duramente conquistada e tão eternamente precária, parece de uma grosseira inutilidade. Quanto à nossa descendência, nós a contemplamos com um olhar novo e horrorizado porque, sem as vestes do altruísmo, o acto de se reproduzir parece profundamente deslocado. Restam apenas os prazeres sexuais; mas, arrastados no rio da miséria primal, eles vacilam da mesma forma, pois a ginástica sem o amor não entra no quadro das nossas lições bem aprendidas.
A eternidade escapa-nos.
Nesses dias, em que soçobram no altar da nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido.
(...)
Nesses dias, precisamos desesperadamente de Arte. Aspiramos ardentemente retomar a nossa ilusão espiritual, desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda a poesia e toda a grandeza não sejam excluídas deste mundo.
Então, tomamos uma xícara de chá ou assistimos a um filme do Ozu, para nos retirarmos da ronda das justas e batalhas que são os costumes reservados da nossa espécie dominadora, e darmos a esse teatro patético a marca da Arte e das suas obras maiores.

Muriel Barbery in A elegância do ouriço (Cap. 12. Comédia Fantasma)

Receitas Caseiras para Mulheres Infiéis


O fundamental é o tempero. É daí que vem o temperamento, sem o qual o prato mais sofisticado resulta desenxabido. Uma mulher (e por que não um homem, depende do homem) sabe que, para singrar nas artes do amor, precisa de ter sempre o temperamento à mão. O segundo factor a ter em conta é, por conseguinte, a mão. Com tempero e mão, mão e tempero, o mundo é dos amantes!

Segundo o dicionário, tempero é:
1. Verbo: Colocar substâncias na comida para lhe dar bom sabor. = ADUBAR, CONDIMENTAR 
Vem mesmo a calhar para o que está em jogo. Que é a comida, mas não a mera comida, conceito que nada tem de sensual. O pasto que se aduba com o tempero conveniente tem outra dignidade e outra ambição. Aduba-se com mão de jardineiro para que nele desabroche o Verão de todos os frutos proibidos. Adubar é acrescentar cultura à natureza. Se o trabalho for bem feito, temos a santa aliança da mão e do tempero.


(...)

Com perdão ao dicionário, mas em culinária, o substantivo é infinitamente plural e só nessa dimensão merece ser acolhido. Passa-se com os temperos aquilo que uma personagem de Brecht dizia dos vícios: é preciso ter pelo menos dois, porque só um é de demais. Um tempero sozinho, sem um parceiro, não passa disso mesmo: de um parceiro sozinho sem tempero. Um solipsismo vicioso. Além de que - é do senso comum - os temperos são, na maioria, venenosos. E a intenção não é matar; pelo menos para já!!

Regina Louro in Receitas Caseiras para Mulheres Infiéis




Crepes de cacau com cereja e yogurte
http://gourmets-amadores.blogspot.com.br/2012/06/crepes-de-chocolate-cerejas-e-iogurte.html

terça-feira, 31 de julho de 2012

passo os dias a observar os objectos
sinto o tempo devorá-los impiedosamente

já não somos marinheiros nem pastores
nem ferradores nem vendedores de animais
perdemos a sabedoria dos remotos ofícios
ignoramos o ardor dos corpos estendidos no orvalho
a beleza da noite desprendendo fogos
o aroma espesso dos frutos... a fecunda alegria

arrasto comigo o cheiro amargo da memória
mascaro os dias com palavras cujo significado perdi
mas nenhuma felicidade vem alojar-se no coração

o mundo que te rodeou continua inaudível e perdido
apodrece nas fotografias arrumadas dentro da gaveta
debaixo da roupa engomada

o aparo da caneta imobiliza por trás de cada palavra
o som dos poucos objectos com que partilhámos a vida

fica com as máscaras de tinta a morderem-te a noite
eu parto para qualquer país onde não exista

Al Berto

domingo, 29 de julho de 2012

Chuvas de Verão

21 Dezembro 2011

Na verdade de um pensamento reside uma ideia. Uma ideia que nos transforma, que nos move para a frente, que nos faz andar numa linha quase recta, que se pretende quase iluminada. O meu cansaço de hoje mostra-me esta recta. Uma recta que se ergue sobre o perdão a mim mesma e a vitória de uma verdade.

Encontrei, hoje, este início de texto que escrevi em Dezembro de 2011.
Lembro-em das chuvas de Verão desse mês e de como estava quando o escrevi: em chuva. Também. 

Que chegasses sempre assim

(...)
Que chegasses com o vento
com a chuva
com o ouro do Verão
com a melodia dourada do mar.

Que chegasse
e chegasses
e nunca mais parasses 
de chegar.

José Fanha in Que chegasses sempre assim 








Picture: "À Beira do Mar Azul" (1933) de Boris Barnet