sábado, 4 de agosto de 2012

Comédia Fantasma

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Às vezes, porém, a vida parece-nos uma comédia fantasma. Como tirados de um sonho, olhamos os outros agir e, gelados ao verificarmos o dispêndio vital requerido pela manutenção dos nossos requistos primitivos, perguntamos com espanto o que restou da Arte. O nosso frenesi de caretas e olhadelas parece-nos de repente o cúmulo da insignificância, o nosso pequeno ninho tão macio, fruto de um endividamento de vinte anos, parece um inútil costume bárbaro, e a nossa posição na escala social, tão duramente conquistada e tão eternamente precária, parece de uma grosseira inutilidade. Quanto à nossa descendência, nós a contemplamos com um olhar novo e horrorizado porque, sem as vestes do altruísmo, o acto de se reproduzir parece profundamente deslocado. Restam apenas os prazeres sexuais; mas, arrastados no rio da miséria primal, eles vacilam da mesma forma, pois a ginástica sem o amor não entra no quadro das nossas lições bem aprendidas.
A eternidade escapa-nos.
Nesses dias, em que soçobram no altar da nossa natureza profunda todas as crenças românticas, políticas, intelectuais, metafísicas e morais que os anos de instrução e educação tentaram imprimir em nós, a sociedade, campo territorial cruzado por grandes ondas hierárquicas, afunda no nada do Sentido.
(...)
Nesses dias, precisamos desesperadamente de Arte. Aspiramos ardentemente retomar a nossa ilusão espiritual, desejamos apaixonadamente que algo nos salve dos destinos biológicos para que toda a poesia e toda a grandeza não sejam excluídas deste mundo.
Então, tomamos uma xícara de chá ou assistimos a um filme do Ozu, para nos retirarmos da ronda das justas e batalhas que são os costumes reservados da nossa espécie dominadora, e darmos a esse teatro patético a marca da Arte e das suas obras maiores.

Muriel Barbery in A elegância do ouriço (Cap. 12. Comédia Fantasma)

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