terça-feira, 25 de setembro de 2012

morte instantânea


Toco a tua boca. Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.

Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água.

in Capítulo 7, Rayuela, Júlio Cortazar

sábado, 15 de setembro de 2012

João de Deus

“Minhas Senhoras e meus Senhores,
caro colega, vou ser breve.
Poupar-vos-ei o relato atribulado em que, por circunstâncias meramente fortuitas e inesperadas, me tornei geladeiro e, pouco a pouco, me fui devotando ao meu ofício. Sou um homem de paz. Podia, quem sabe, ser um criminoso, um proscrito, em permanente rebelião contra uma lei social cega e aberrante. Não sei.
Sei que nunca poderia ser político, engrossar o cortejo dessa corja que põe e dispõe do ser humano, guiando-o para um devir cada vez mais favorável à condição de rastejante. “- És réptil e em réptil te tornarás” é a lógica que forma incansavelmente a nossa vergonhosa degradação enquanto indivíduos, enquanto espécie.
Contra a trapaça universal os gelados enregelados, o meu gelado, que leva em si toda a energia calórica do mundo, uma palavra amiga, uma prova de amor. Rigor e fantasia.
O último luxo soberano de um homem livre que teve a suprema ousadia de, no país dos gatos pingados, exaltar a vida. Não tenho receitas, fórmulas mágicas.
Cada gelado que fabrico tem um perfume que lhe é próprio - o seu perfume. Nunca é semelhante ao anterior, nunca será igual ao que lhe sucede. Cada um tem, no entanto, algo para recordar: uma viagem, um passeio, um encontro, um ente querido, a mulher amada…
O meu sonho, talvez irrealizável, é fabricar um perfume que concentre em si todos os perfumes, harmoniozamente chegar-me a Deus, à quintessência dos perfumes.
Não atraiçoem nunca os sonhos da vossa infância.
Se abrirdes os vossos corações talvez possamos provar o glorioso gelado final.”
in “A Comédia de Deus” (1995) de João César Monteiro

De vez em quando, destreinamos...

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O Anjo


Um anjo como este, o melhor que tem a fazer é ficar à espera de que alguém lhe diga o que precisa dele. Muitas vezes, leva mais tempo do que ele pensa; ele tem mesmo de ser mais comedido, não deve julgar-se insubstituível  Pela minha parte, não gostaria de estar no lugar daquele de quem fiz um anjo. Fiz dele um deus, para que ele nunca mais viesse ao meu encontro em parte alguma, para que fosse imóvel como uma imagem e eu pudesse dirigir o meu olhar para ele conforme precisasse ou desejasse. Quase me faz pena que ele tenha julgado que eu sou curioso e que vou andar a correr atrás dele, agora que eu quase o trago metido no bolso ou que o tenho agarrado a mim como se ele fosse uma fita amarrada em redor da minha testa. Já não sou eu quem vai ter com ele, é o valor dele que me envolve, é o fulgor da sua luz que me rodeia. Quem soube dar soube também tomar para si. Tanto uma coisa como outra têm de ser praticadas. Ele nasceu da compaixão, mas pode bem acontecer que eu, o implorante, brinque com ele. Ele duvida, inquieta-se. Eu umas vezes creio, outras descreio, e ele tem de levar isso com paciência, esse querido.

Robert Walser in A Rosa (1925)

Setembro

A repetição nada muda no objecto que se repete, mas muda alguma coisa no espírito que a contempla. 
(D. Hume) 











Para minha sanidade mental




Para minha sanidade mental escrevo-me. Me escrevo. Agora sou eu que me escrevo. 

Para minha segurança quero perder a audiência. Ficar no silêncio, sob as pálpebras negras que me cobrem quando abro os olhos.

Ele deve estar debaixo da árvore de folhas caídas. Na sombra, passando pela dificuldade de sobreviver à primeira impressão (ou talvez não).

Para mim sempre foi a dificuldade de sobreviver. Só. 
Sobreviver só. Só sobreviver...
Sobreviver à celebração da alegria, sobreviver à perda dela e sobreviver à sua reconquista.

Diz-me o que fazer para te sobreviver. 
Arrisco-me na tentativa de ser original? 
Para ti? 
Para nada?