quinta-feira, 25 de março de 2021

Êxtase

E estando juntos destruímos portas

somos o equilíbrio das forças reclinadas

devassamos o corpo como um mito


Alberto de Lacerda

in Labaredas

Tinta da China

2018

quarta-feira, 24 de março de 2021

Antigamente

Antigamente conseguíamos acreditar nas coisas

invisíveis, nas sombras e nas sombras delas,

numa luz escura e rósea como uma pálpebra.

Ah, as mandíbulas da máquina fotográfica

mordem as imagens. Conseguimos acreditar agora

só no antigamente, exactamente como o pobre

antigamente acreditava em nós, netos e bisnetos,

sonhando que um dia viríamos a sair da armadilha que

em cada geração encenam Danton

e Robespierre, Beria e outros ambiciosos

discípulos. Uma vez que não há refúgio,

há refúgio. Porque as coisas invisíveis

também existem, com sons

que ninguém ouve. Não há

consolação e há consolação, sob o

cotovelo do desejo, lá onde cresceriam

pérolas, se as lágrimas fossem dotadas de memória.

E contudo o patinador não perde o equilíbrio,

saindo às arrecuas do precipício. Contudo

tanto a alvorada como o leiteiro se levantam cedo

e correm na neve, deixando brancas pegadas,

que se enchem de água. Um pequeno pássaro bebe essa água

e canta mais uma vez

salva a desordem das coisas e a ti e a mim

e ao próprio canto.




adam zagajewski
sombras de sombras
tinta-da-china
2017

segunda-feira, 22 de março de 2021

As mãos

Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornaram pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Como pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.

 

marguerite yourcenar
fogos
trad. de maria da graça morais sarmento
difel
1995