segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Coração Selvagem

Havia uma época em que eu andava no bolso com uma frase do livro "Perto do Coração Selvagem", como meu amuleto de sorte: "A cada luta ou descanso, me levantarei forte e bela como um cavalo novo". É muita energia em apenas uma frase.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

fingir

fingimos (porque convém fingir) 
um universo paralelo em que nos amamos 
e nós nos amamos como se realmente nos tivéssemos chegado a amar 
nos amamos por tudo e por nada
nos amamos para sempre, como aquele casal de velhinhos, os meus avós
nos amamos em separação e saudade, como nos filmes e poemas
nos amamos borrifando amor pelo ar e respirando isso
"love loves to love love", conhece?
é tudo mentira. é tudo fingimento.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Ontem
morreu a puta mais velha
da vila. 

Tinha cabelos brancos,
um dente de ouro
e uma foto adolescente.
Nunca reclamou do tempo,
do governo
e do preço das coisas. 

Mas, desconfio, tinha desertos dentro de si. 

Foi vista um dia
Olhando uma nuvem. 
Gostava de um vestido vermelho
que nem lhe servia mais. 
Quando ela morreu
dois negrinhos barrigudos
olhavam o incêndio
num monte de lixo. 

Dizem que foi a paixão
de um importante político
nos anos 40. 

Teve jóias,
roupa nova,
convite pra festas
e pneumonia. 

Sobraram-lhe as rugas:
michê de fim de expediente.
Votou em Getúlio
e sempre respeitou a sexta-feira santa 
Paixão ela teve duas
Um manco de bigodinho
e um outro que voltou pro Norte. 

O esmalte no dedão descascava
Como descascam certos dias
e a gente não vê. 

Morreu só
a puta mais velha da vila. E uma doença
que quase a matou. Um cara perguntou
se ela era feliz. Outro, por que não casou.
E ela sabia
que um Domingo
rodeada de netos no subúrbio
é também uma prisão. 
Preferiu a cerveja morna
e o São Jorge sobre a cômoda. 

Morreu velha essa puta na vila.
Sem saber a idade ao certo
mas dos setenta chegou perto. 
Morreu numa tarde anônima
com criança olhando incêndio
e cachorro magro
passeando na vila. Tarde comum
com tédio de vestido vermelho
e de varal de vila.
o mesmo tédio
de que é feita a fúria da primavera
e a esperança das putas.


Marçal Aquino