quarta-feira, 31 de julho de 2013

crónicas imperfeitas

não achas que chegou a hora? um dia ainda me dizes que já não há nada. mais nada no lado de fora do tempo. os anos, sabes? essa maré que nos salva e afoga, que ora nos traz, ora nos leva. o amor ou a dor. sempre o amor ou a dor… ou um lugar, ou a hipótese de um lugar. qualquer ponto no universo onde a estrada acabe. onde o tempo acabe. onde toda a memória possa pairar como um céu sobre o passado. sobre todos os passados. tu sabes. um dia ainda me dizes tudo isto outra vez.
não achas que chegou a hora? os navios ainda erram na linha de azul que nos amarra à terra. a estas janelas, a este dom de olhar. à dádiva de ver para lá e para cá, os navios, o mar, estes pássaros que o sol arrasta. esta luz antiga em que crescemos. que nos escreveu na pele o costume de adormecer e despertar como se as horas chegassem de dentro e morressem ainda mais dentro e isso fosse a marca, a escritura solene que te torna dono do que sempre te pertenceu.

gil t. sousa

paisagem interior aquecida

e os vulcões a fecharem-se
como flores no gelo

tu numa bicicleta de vento
a pedalar o fogo

por entre as nuvens,
tão novos caminhos. ah! tão novos!

tão altos os céus, ah! sempre tão altos
e muito ao longe o mundo:

uma vela podre no universo
mas ainda assim a luz

ainda assim
a casa para onde voltamos.


gil t. sousa
água forte
2005

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Canção de ser criança

A criança quando criança
caminhava de braços balançando
queria que um ribeiro fosse um rio
o rio uma corrente
e este charco o mar

A criança quando criança
não sabia que o era
tudo lhe era sagrado
e todas as almas uma só

A criança quando criança
não tinha qualquer opinião
vícios
sentava-se muitas vezes de perna cruzada
fugia a correr
tinha um remoinho no cabelo
e não fazia figura para a fotografia

A criança quando criança
era tempo das seguintes perguntas
Porque sou eu e não tu?
Porque estou aqui e não ali?
Quando começou o tempo e onde acaba o espaço?
Não é a vida debaixo do Sol apenas um sonho?
Isto que vejo oiço e cheiro
não é apenas uma aparência dum mundo antes do mundo?
Há mesmo o mal e pessoas
essas que são verdadeiramente as más?
Como pode ser que eu que estou aqui
antes de o ter sido não era
e uma vez eu que sou eu
não mais serei?

A criança quando criança
custava-lhe comer espinafre ervilhas arroz doce
e couve-flor estufada
e agora come isso tudo e não apenas por necessidade

A criança quando criança
despertou uma vez numa cama estranha
e agora sempre de novo
pareceram-lhe bonitas muitas pessoas
e agora só apenas por feliz acaso
imaginava claramente um paraíso
e hoje pode quanto muito pressenti-lo
não podia inventar o Nada
e hoje arrepende-se disso

A criança quando criança
brincava entusiasmada
e agora nisso como outrora apenas
quando é o seu trabalho

A criança quando criança
bastava-lhe como alimento maçã pão
e ainda assim é

A criança quando criança
caiam-lhe bagas como apenas bagas nas mãos
e agora ainda
as nozes frescas faziam-lhe a língua áspera
e agora ainda
tinha em cada montanha
saudade por uma montanha mais alta
e em cada cidade
saudade por uma cidade ainda maior
e assim ainda é
agarrava em êxtase numa cereja na copa duma árvore
como ainda hoje
tinha timidez com todos os estranhos
e ainda tem
esperava pela primeira neve
e ainda espera


A criança quando criança
atirou como lança um pau contra a árvore
e ela treme lá ainda hoje


Peter Handke

Onde está você




Onde está você
Apareça aqui pra me ver
Eu vou gostar demais
Sabes onde estou
E nada mudou
Venha me dizer onde você andou

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Constatação do Absurdo

De um lado, a pobreza de um meio operário, a estreiteza de uma casa com cómodos, a rigidez de uma disciplina imposta para fazer render o suado pão de cada dia, as condições de sobrevivência restritas ao essencial. De outro lado, a exuberância de uma paisagem luminosa, a imensidão de um mar eternamente azul, vislumbrado desde a esquina de cada rua, explodindo sem cessar sobre as areias sem fim. Como um luxo supérfluo nesse esbanjamento de beleza, as ruínas romanas desafiam o tempo e parecem lembrar a mortalidade dos homens. A sua lembrança, entretanto, é igualmente supérflua: por falta de bens imprescindíveis, morre-se muito cedo - e morre-se jovem - nessa terra onde tudo convida a viver.

Nascido e criado entre contrastes fundamentais, Albert Camus desde cedo aprendeu que a miséria engendra uma solidão que lhe é típica, uma austeridade toda sua, uma desconfiança da vida - mas a paisagem desperta uma rica sensualidade, uma eufórica sensação de omnipotência, um orgulho desmedido de possuir a beleza inteiramente gratuita. Esse aprendizado, feito a meio caminho entre a miséria e o sol, levou-o à consciência do que existe de mais trágico na condição humana: o absurdo, essa irremediável incompatibilidade entre as aspirações e a realidade. 

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O absurdo consiste na incompatibilidade entre um anseio humano de explicação para o mundo e o mistério essencial desse mundo inexplicável, entre a consciência da morte e o desejo de uma impossível eternidade, entre o sonho da felicidade e a existência do sofrimento, entre o amor e a separação dos amantes.


em Vida e Obra de Albert Camus

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Fazer de conta

Aprendi com os Dogon uma regra incrível, que se transformou na norma da minha vida, que é "fazer de conta" como fazemos agora. Faire comme si, fazer de conta é... fazer de conta que o que dizemos é verdade. (...) Tenho consciência de ter feito de conta a vida toda. Fiz de conta que era engenheiro de estradas, fiz de conta que era ex-combatente. Fiz de conta que lutei na guerra. Fiz de conta que etc... E era verdade.

Jean Rouch

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Distance is the soul of beauty.

This sentence of Simone Weil expresses an old truth: only through distance, in space or in time, does reality under go purification. Our immediate concerns which were blinding us to the grace of ordinary things disappear and a look backward reveals them in their every minutest detail. Distance engendered by the passing of time is at the core of the oeuvre of Marcel Proust. Distance in space and awareness that borders with their barbed wire separated him from his country allowed a young Lithuanian to write his Idylls.

Jonas Mekas

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Pastelaria


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita genteque come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra


Mário Cesariny

terça-feira, 9 de julho de 2013

A democracia põe em causa a nossa credibilidade


Quando Pedro Passos Coelho, Paulo Portas e Cavaco Silva entraram no Mosteiro dos Jerónimos, para a missa do novo cardeal patriarca, toda a fina flor do regime aplaudiu, entusiasmada, os salvadores da estabilidade política. Depois da mais desenvergonhada palhaçada, eles fizeram-se de novo amigos, trocaram ministros e ministérios, pequenos poderes e vaidades, e impediram a pior das tragédias: eleições. A coisa manteve-se, como se deve manter, entre pessoas civilizadas. Porque, já se sabe, eleições obrigam a eleitoralismo, o eleitoralismo leva ao populismo e o populismo leva a escolhas erradas. Ou seja, as eleições são, em qualquer democracia decente, um problema a evitar. Fazem-se, quanto muito, na data marcada para manter as aparências.
A opinião mediática condicionou, através da chantagem e do medo, qualquer decisão que pudesse levar a eleições. Tudo devia ficar como se nada tivesse acontecido. Para além da manutenção de um governo que já ninguém respeita, todas as possibilidades foram postas em cima da mesa: cozinhava-se um governo qualquer, juntavam-se os três partidos responsáveis (responsabilíssimos, como temos visto), mudava-se a liderança do PSD ou do CDS, arranjava-se alguém que estivesse disposto a governar sem o apoio da opinião pública, fazia-se um governo minoritário que estivesse em queda iminente desde do dia da tomada de posse, escolhia-se um governo de Salvação Nacional que, como é evidente, não iria salvar coisa nenhuma. Desde que se evitasse a participação da turba, sempre muito perturbadora da "estabilidade política" e dos mercados, tudo, por pior que fosse, seria aceitável. Muitos dos que o defenderam não pensaram o mesmo nas vésperas de se assinar o memorando da troika, percebendo-se que o valor da estabilidade depende, em muitos casos, de quem tenha a maioria no momento.
Os argumentos para a não realização de eleições foram três: a nossa credibilidade junto da troika, a nossa imagem junto dos mercados e a ausência de qualquer solução estável depois das eleições. Vou ignorar aqui, por decoro, o argumento do preço das eleições. Porque descer a este nível é conspurcar o debate político.
Quando à credibilidade junto da troika (da Alemanha), tenho uma novidade: nenhuma solução que não passe pelo que Vítor Gaspar fez nos dois últimos anos, com os resultados que teve para a nossa economia, tem credibilidade junto da troika. E nem isso chega. Quando tudo se mostrar inútil a troika dirá, como já começou a dizer, que Portugal não está a cumprir. Penso que o guião da Grécia é suficientemente conhecido para não termos ilusões.
A democracia nos países periféricos não tem credibilidade junto da Comissão Europeia, BCE e FMI. Se quisermos realmente agradar-lhes suspendemos todos os atos democráticos, incluindo as eleições, obrigamos os três partidos a assinar um acordo inviolável e vitalício em torno de tudo o que está decidido e extinguimos o Tribunal Constitucional e o Estado de Direito. E, mesmo assim, será dito, no fim de tudo, que fomos nós que não fizemos as coisas como deve ser. Porque, insisto no que escrevo há dois anos, o objetivo deste "resgate" não é, nunca foi, salvar Portugal. É, sempre foi, sacar o máximo possível do que devemos para depois abandonar a carcaça na beira da estrada. A Europa é, nos dias que correm, esta selva. E ser "credível" é aceitar morrer sem resistir.
Tudo o que façamos para resolver os nossos problemas enfurecerá a troika. Que, como fez na semana passada com o dinheiro que virá com a 8ª avaliação, fará a mais descarada das chantagens à mínima tentativa de restaurar a normalidade democrática no País. Ou queremos sair desta crise e vivemos com os riscos que isso implica ou aceitamos morrer calados. É a escolha que temos pela frente. Uma escolha que chegou a este limite: há quem, fora de Portugal, pense que nos pode impedir de exercer os direitos democráticos e nós achamos normal que isso seja sequer uma posição a ter em conta. Se a tivermos em conta seremos obrigados a reconhecer que a existência de Portugal, como Estado soberano, é uma anedota. E mais vale acabar de uma vez por todas com esta Nação. Porque um País que julga que a independência não comporta enormes perigos não merece essa independência.
(…)
Quanto à solução política que sairia das próximas eleições, só por humor negro, depois daquilo a que assistimos na semana passada, alguém pode falar de estabilidade e credibilidade. Não há soluções política estáveis e, em simultâneo, democráticas, na atual situação social e económica. Porque este "ajustamento" é incompatível com a democracia. Nunca houve estabilidade política com instabilidade social. É dos livros. E nenhum governo, enquanto isto durar, terá uma esperança de vida muito longa. A questão é saber se, dentro da instabilidade que é estrutural a esta crise, Portugal tem quem represente um pouco melhor (mesmo que mal) os sentimentos do País. A começar por não ter a dirigir o governo a única pessoa que ainda acredita que a loucura imposta pela troika é a saída para esta crise. A democracia é isso mesmo: garantir, o melhor possível, a representatividade da vontade popular. Não é um arranjo onde os cidadãos são um "problema" que podemos ignorar.
Podemos continuar a brincar com o fogo. Podemos continuar à procura de atalhos para adiar a clarificação política. Até as eleições chegarem, haver um terramoto eleitoral que não deixe pedra sobre pedra no nosso sistema partidário. Até poderia ser bom, mas acho que os arautos da "estabilidade política" (aqueles que, como Marques Guedes, a consideram "um valor em sim mesmo") não têm razões para se entusiasmar com este cenário. E podemos continuar eternamente a achar que se pode governar sem dar grande importância à opinião dos cidadãos, meros destinatários passivos de inevitabilidades. Até ser mais difícil encontrar um português que acredite na democracia do que um governante que junte a coragem à competência.
Que a troika se esteja nas tintas para a viabilidade da nossa economia e da nossa democracia não me espanta. Eles não vivem aqui. Não terão de conviver com o Inferno político e social que andam a alimentar. Eles não são eleitos. Não terão de pagar o preço dos seus disparates. Que políticos, comentadores e jornalistas portugueses julguem que se pode levar a degradação da democracia e das condições sociais de vida muito para lá do limite do que é sustentável é que me espanta. Julgarão que estarão a salvo das suas consequências? Não estão. Quando surgirem os populistas salvadores da Pátria, prontos para "limpar" o País e "regenerar" a política, podem esquecer a liberdade de imprensa, as eleições e a fiscalização do poder. Quando isto acontecer, estes cúmplices da destruição da democracia, que desprezam o que lhes permite exercer as suas funções em liberdade, apenas estarão a colher os frutos que semearam.
As coisas vão correr bem se houver eleições? Não. Como não vão correr bem se elas não existirem. E, em qualquer um dos casos, haverá, com este ou com outro nome, um segundo "resgate". Basta olhar para os números das finanças e da economia, mesmo ignorando todo o contexto político, para o saber. A vantagem das eleições é só esta: ter no governo alguém que, governando bem ou mal (não sei que governo sairá do sufrágio popular), ainda represente algum português. Em democracia, isso faz alguma diferença. Ou não?


Daniel Oliveira in Expresso (09.07.2013)

domingo, 7 de julho de 2013

Iniciação ao mundo e ao medo



Há dois mundos em choque em Post Tenebras Lux, o da cidade, de onde uma família saiu, e o do campo, onde se instalou. É batalha na terra: Júan e El Siete, ex-patrão e ex-empregado, agora amigos, vão ser instrumentos do devir de aniquilação da sociedade mexicana.

Contar assim, é procurar um filme que não se encontra em Post Tenebras Lux. Porque, como outros, de cineastas como Apichatpong Weerasethakul ou Michelangelo Frammartino, também este, que são encontros imediatos com as profundezas e pesadelos do país de Reygadas, exercita a musculatura dos sentidos no espectador. Que é como quem diz que a experiência do caos se vai revelando uma comunhão sensorial com uma alegoria sobre a perda de inocência e a iniciação ao mundo. 

Vasco Câmara in Público (05.07.2013)

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Dos Desejos












Tsaparang, cidade em ruínas - Tibete

Montanha Kailash, 6711 metros de altitude - Tibete

Palácio de Potala - Tibete