terça-feira, 31 de julho de 2012

passo os dias a observar os objectos
sinto o tempo devorá-los impiedosamente

já não somos marinheiros nem pastores
nem ferradores nem vendedores de animais
perdemos a sabedoria dos remotos ofícios
ignoramos o ardor dos corpos estendidos no orvalho
a beleza da noite desprendendo fogos
o aroma espesso dos frutos... a fecunda alegria

arrasto comigo o cheiro amargo da memória
mascaro os dias com palavras cujo significado perdi
mas nenhuma felicidade vem alojar-se no coração

o mundo que te rodeou continua inaudível e perdido
apodrece nas fotografias arrumadas dentro da gaveta
debaixo da roupa engomada

o aparo da caneta imobiliza por trás de cada palavra
o som dos poucos objectos com que partilhámos a vida

fica com as máscaras de tinta a morderem-te a noite
eu parto para qualquer país onde não exista

Al Berto

domingo, 29 de julho de 2012

Chuvas de Verão

21 Dezembro 2011

Na verdade de um pensamento reside uma ideia. Uma ideia que nos transforma, que nos move para a frente, que nos faz andar numa linha quase recta, que se pretende quase iluminada. O meu cansaço de hoje mostra-me esta recta. Uma recta que se ergue sobre o perdão a mim mesma e a vitória de uma verdade.

Encontrei, hoje, este início de texto que escrevi em Dezembro de 2011.
Lembro-em das chuvas de Verão desse mês e de como estava quando o escrevi: em chuva. Também. 

Que chegasses sempre assim

(...)
Que chegasses com o vento
com a chuva
com o ouro do Verão
com a melodia dourada do mar.

Que chegasse
e chegasses
e nunca mais parasses 
de chegar.

José Fanha in Que chegasses sempre assim 








Picture: "À Beira do Mar Azul" (1933) de Boris Barnet

terça-feira, 24 de julho de 2012

Seda

Na época dos Tang, a nobreza, o grupo mais rico e prestigiado da sociedade, dominava a vida política, ocupando importantes cargos no governo. Muitos desses nobres eram parentes do imperador. A maioria deles morava em residências confortáveis, localizadas no campo, e cultivava o hábito de beber chá, jogar xadrez e enfeitar a casa com flores.

Viajando ao tempo da simplicidade



春望词四首 

(一)

花开不同赏,
花落不同悲。
欲问相思处,
花开花落时。

(二)

揽草结同心,
将以遗知音。
春愁正断绝,
春鸟复哀吟。

(三)

风花日将老,
佳期犹渺渺。
不结同心人,
空结同心草。

(四)

那堪花满枝,
翻作两相思。
玉箸垂朝镜,
春风知不知。


Canção contemplando a Primavera

(I)
As flores abrem, mesmo sem apreço
as flores caem, com ou sem lamento
Se da saudade indagas, quando faltas:
quando se abrem as flores, quando caem

(II)
Colhi ervinhas, fiz um nó-do-amor
para entregar a ele, o que me entende
Da primavera enfim a dor partia
e vêm os pássaros, seu canto triste

(III)
Ao sopro do dia envelhecem as flores
Longe o momento, tão longa a espera
Nenhum laço une amor e amante
trança o vazio meu nó-do-amor

(IV)
Insuportáveis os galhos repletos,
flores demais! Saudades às pencas
Plena manhã, o espelho reflete
à primavera as lágrimas, o vento 



Poema de Xue Tao durante a Dinastia Tang



sexta-feira, 20 de julho de 2012

Cego

Muito longe, na calçada, por baixo de um toldo vermelho, o mais longe que conseguia ver, estavam dois homens a despedir-se. Um deles era eu. De camisa branca suja, cabelo desgrenhado, barba por fazer. O outro, mais baixo, chapéu triunfante e fato verde seco era o meu futuro chefe. Tinham acabado de sair do Café Lunes onde os observei durante horas. Eu estive quase sempre imóvel durante toda a conversa, pelo menos, de onde observava assim me pareceu. Por outro lado, o meu futuro chefe gesticulava entusiasmado. Tenho pena de não conseguir ouvir o que falavam, mas como a mesa estava junto a um grande vidro pude gravar toda a imagem muda na minha cabeça.


Quando o gordo me deixou, vi que tirei um cigarro do bolso, que o acendi e o fumei na vertical. Mexia no cabelo. Parecia indiferente a tudo. Cego.


Comecei a andar sem ver nada. Caminhava de noite. E eu sabia que tinha sido sempre assim: ofuscado pela luz que me rodeava ou de olhos abertos para o breu que me envolvia.


Segui-me lentamente com curiosidade por mim. Estava longe para me conseguir guiar, então, apenas me acompanhei. Vi a minha alma circundada por vultos sem rosto, bichos nocturnos, borboletas sem asas e histórias sem memória.


Percebo, de longe, pela expressão do meu rosto, que estava perdido. Algo dentro de mim puxava o meu ar, deixando-me despido num desequilíbrio, só.


Decido andar calmamente na minha direção. Caminho inseguro sobre uma estrutura falível que cairá a qualquer momento. Ou não.


Interrompo-me.


Pego em mim e mastigo-me vagarosamente. Sem pressa de me absorver.


A guerra tinha começado e eu não tinha dado por isso...











Painting: Amedeo Modigliani - Leopold Zborowski 4

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Levem-me

Levem-me numa caravela, 
Numa velha e doce caravela, 
Na roda de proa, ou, se quiserem, na espuma,
E percam-me ao longe, ao longe.

Na esteira duma outra idade.
No veludo enganador da neve.
No bafo de alguns cães reunidos.
No exército exausto das folhas mortas.

Levem-me sem me quebrar, por entre beijos, 
Nos peitos que arfam e respiram, 
Nos tapetes das palmas das mãos e seus sorrisos,
Nos corredores dos ossos compridos e das articulações.

Levem-me, ou antes, escondam-me.


in As Minhas Propriedades de Henri Michaux

domingo, 8 de julho de 2012

Incêndio

se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha - não te assustes


são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te


diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo - diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas - com eles no chão


Al Berto
A convicção de que a natureza humana raramente se confronta com algo «irremediavelmente perdido» não falha nunca em conferir-nos certa respeitabilidade.

Robert Walser, Histórias de Amor

sexta-feira, 6 de julho de 2012

- Quem é ele?
- Um homem honesto.
- Honesto? Porquê?
- Não tem alma.














in Francisca - Manoel de Oliveira (1981)

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Os Deuses e nós.


No topo da montanha reproduzem-se deuses.
Ouve-se o uivar dos gigantes poderosos. 


Silêncio.


Apaga-se a luz do breu.
Aqui em baixo representa-se.  
Felicidade representada pelos homens tristes. 
Estão sós. 


Risos. 
Risos de prazer no topo da montanha. 
São rasgados orgasmos libertinos pelos 
embriagados cheios de comédia divina.  


Aqui.
Vamos dormir para amanhã irmos dormir de novo. 
Repetimo-nos.
Mentimo-nos.
Repetimo-nos sempre.

Repetimo-nos para nos esquecermos de nós.



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