sábado, 17 de abril de 2021

O Valor da Ingenuidade

O maior perigo que corre o ingénuo: o de querer ser esperto. Tão ingénuo que cuida, coitado, de que alguma vez no mundo o conhecimento valeu mais do que a ingenuidade de cada um. A ingenuidade é o legítimo segredo de cada qual, é a sua verdadeira idade, é o seu próprio sentimento livre, é a alma do nosso corpo, é a própria luz de toda a nossa resistência moral. Mas os ingénuos são os primeiros que ignoram a força criadora da ingenuidade, e na ânsia de crescer compram vantagens imediatas ao preço da sua própria ingenuidade. Raríssimos foram e são os ingénuos que se comprometeram um dia para consigo próprios a não competir neste mundo senão consigo mesmos. A grande maioria dos ingénuos desanima logo de entrada e prefere tricherno jogo de honra, do mérito e do valor. São eles as próprias vítimas de si mesmos, os suicidas dos seus legítimos poetas, os grotescos espanatalhos da sua própria esperteza saloia. Bem haja o povo que encontrou para o seu idioma esta denunciante expressão da pessoa que é vítima de si mesma: a esperteza saloia. A esperteza saloia representa bem a lição que sofre aquele que não confiou afinal em si mesmo, que desconfiou de si próprio, que se permitiu servir de malícia, a qual como toda a espécie de malícia não perdoa exactamente ao próprio que a foi buscar. Em português a malícia diz-se exactamente por estas palavras: esperteza saloia. Parecendo tão insignificante, a malícia contudo fere a individualidade humana no mais profundo da integridade do próprio que a usa, porque o distrai da dignidade e da atenção que ele se deve a si mesmo, distrai-o do seu próprio caso pessoal, da sua simpatia ou repulsa, da sua bondade ou da sua maldade, legítimas ambas no seu segredo emocional. Porque na ingenuidade tudo é de ordem emocional. Tudo. O que não acontece com as outras espécies de conhecimento onde tudo é de ordem intelectual. Na ordem intelectual é possível reatar um caminho que se rompeu. Na ordem emocional, uma vez roto o caminho, já nunca mais se encontrará sequer aquela ponta por onde se rompeu. O conhecimento é exclusivamente de ordem emocional, embora também lhe sirvam todas as pontas da meada intelectual. 


Almada Negreiros, in "Ensaios"

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Vida em Família

 A mãe faz tricô

O filho faz a guerra
A mãe acha isso natural
E o pai? O que faz o pai?
Faz negócios
A mulher faz tricô
O filho a guerra
E ele negócios
O pai acha isso natural
E o filho e o filho
O que é que o filho acha?
Não acha nada absolutamente nada
Acha que a mãe faz tricô que o pai faz negócios e que ele faz a
      guerra
Depois de fazer a guerra
Fará negócios com o pai
A guerra continua a mãe continua a tricotar
O pai continua a fazer negócios
O filho foi morto já não continua
O pai e a mãe vão ao cemitério
O pai e a mãe acham isso natural
A vida continua com o tricô, com a guerra, com os negócios
Os negócios a guerra o tricô a guerra
Os negócios os negócios e os negócios
A vida com o cemitério.
 
 
 
jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007