quinta-feira, 26 de setembro de 2013

"As coisas mudaram muito"

Quando se deixa uma terra por outra, se vivemos com entendimento e força de alma, deixamos o nosso espectro um pouco por toda a parte. É como morrer de maneira incorrupta, mas com igual arranque de saudade.
O caminho que faço todos os dias percorri-o hoje com distracção novelesca; e o que eram encontros muitas vezes sem agrado - pobres ou jardineiros, ou gente de ambíguos afazeres e tristezas - tornou-se de repente, já no espírito da distância, figuras reparadas, profundas, merecidas.

Agustina Bessa Luís in "Conversações com Dmitri e outras fantasias"

1979

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Vai o movimento...

Mas se voltarmos apenas um pouco que seja para as fontes respiratórias, plásticas, activas, da linguagem, se relacionarmos as palavras com os movimentos físicos que lhes deram origem, se o aspecto lógico e discursivo da palavra desaparecer sob seu aspecto físico e afectivo, isto é, se as palavras ao invés de serem consideradas apenas pelo que dizem gramaticalmente falando forem ouvidas sob o seu ângulo sonoro, forem percebidas como movimentos, (...) a linguagem da literatura se recomporá, se tornará viva; e ao lado disso, como nas telas de alguns velhos pintores, os objectos por-se-ão a falar.

Antonin Artaud, Carta a Jean Paulhan
28/05/1933

domingo, 22 de setembro de 2013

instant. andrebaumecker.

http://instant.andrebaumecker.com/

http://instant.andrebaumecker.com/

a minha intimidade é pequena

a minha intimidade é pequena
cabe na minha boca
e desliza por entre os dentes;

se a descubro a fingir que é saliva
engulo-a,
não quero vê-la alheia nas palavras
nem perdê-la com um beijo.

ana merino



       Josef Koudelka  NORTHERN-IRELAND-  1978

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

¡Qué bonito es un entierro!



Era uma vez, há muito tempo, uma maravilhosa cidade chamada Tar.
Neste tempo, todas as cidades estavam intactas não havia ruínas pois a guerra final não havia começado. Quando ocorreu a grande catástrofe, sucumbiram todas as cidades, menos Tar. 
Ainda existe Tar.

Se sabes onde a procurar, vais encontrá-la.

Alcançando Tar, ir-te-ão trazer vinho e água e poderás brincar com uma caixa de música à manivela.
Em Tar, ajudarás a colheita nas vinhas e recolherás os escorpiões que se ocultam sob a pedra branca.

Chegando a Tar, conhecerás a eternidade e verás um pássaro que bebe uma gota da água do oceano a cada cem anos.

Uma vez em Tar, compreenderás a vida e te tornarás um gato, um fénix, um cisne, e elefante, e criança e ancião.

Estarás só e acompanhado,
Amarás e serás amado,
Estarás aqui e lá.

O teu será o seio dos seios.

À medida que se aproxima  o futuro, sentirás que o êxtase te esmaga...

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Conhecer alguém

A descoberta do prazer de conhecer alguém.
A descoberta do prazer de se dar a conhecer a alguém.

Em instantes tão longos que ficam para sempre.

.... //....

De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre a começar, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo da dança, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura um encontro.
F. Sabino

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

domingo, 8 de setembro de 2013

O Calmante

Não sei quando morri. Sempre me pareceu que morri velho, por volta dos noventa anos, e que anos, e que o meu corpo o comprovava, da cabeça aos pés. No entanto, neste final de tarde, sozinho na minha cama gelada, sinto que vou ser mais velho do que o dia, do que a noite em que o céu caiu com todas as suas luzes sobre mim, o mesmo céu que tantas vezes olhei, desde que vagueava pela terra longínqua. Porque hoje tenho medo demais para me ouvir apodrecer, para esperar pelos grandes e violentos baques do coração, pelas contorções do ceco sem saída e para esperar que se cumpram na minha cabeça os longos assassínios, o assalto aos pilares inquebrantáveis, o amor com os cadáveres. Vou portanto contar a mim mesmo uma história, vou portanto tentar contar mais uma vez a mim mesmo uma história, para tentar acalmar-me, e é nessa história que sinto que serei velho, muito velho, ainda mais velho do que no dia em que caí, clamando por socorro, e o socorro chegou. Ou talvez nessa história eu tenha regressado à terra, depois de morrer. Não, não é o meu género, regressar à terra, depois de morrer.

(…)

samuel beckett
novelas e textos para nada

Frame: 
Prénom, Carmen de Jean Luc Godard