segunda-feira, 13 de julho de 2020

Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou para tantas precisões.

Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!

A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta...
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.

Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.

Manuel Resende, O Mundo Clamoroso Ainda.

terça-feira, 23 de junho de 2020

INTERVALO

No silêncio que guardo
quando partes

que escondes sob os
dedos

que se prende
que me deixa no corpo
este calor
da falta do teu corpo como sempre


Maria Teresa Horta

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Poemas Quotidianos

50.

Não é nas mãos
que desespero

As minhas mãos
só trabalham
e adormecem

esfriam
ou arrefecem

Não desmaiam
nem têm rios

Têm ossos
músculos
e sangue

poros também
por onde transpiro

mais nada têm

António Reis – Poemas Quotidianos

domingo, 14 de junho de 2020

para hoje

Ofereci-te tanta coisa. A mais preciosa, aquela que há muitos anos não dava a ninguém - a mais preciosa, repito, foi a minha absoluta disponibilidade para estar contigo, ouvir-te, ou estar em silêncio perto de ti.”
Al Berto
in "Diários"

sábado, 13 de junho de 2020

Há sempre um rapaz triste

Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco

(a água é sempre azul
e sempre fresca)

Em que país encontraria
um emprego e esquecimento

em que país encontraria
amor e compreensão

Em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte

Não respondem as gaivotas
porque voam

Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco

António Reis - Poemas Quotidianos, pág. 22, Porto, [1957].

segunda-feira, 8 de junho de 2020

O Espelho

Ontem fiquei esperando desde manhã,
Eles sabiam que não virias, eles adivinhavam. Lembras como o dia estava lindo?
Um feriado! Eu não precisava de casaco.
Você veio hoje, e aconteceu
Que o dia foi cinzento, sombrio,
E chovia, e era meio tarde,
E ramos frios com gotas escorrendo.

Palavras não podem consolar, nem lenços enxugar.


Arseni Tarkovski

terça-feira, 2 de junho de 2020

Estações

Velhinhos se amam jovens nas fotografias.
Os moços projetam roteiros definitivos.
O menino quer crescer pra fazer as coisas.
O madurão avalia se o futuro salda o passado.
As folhas da árvore voam conforme o vento.
A tartaruga ganhou casco para não voar.
Os óculos que enxergam longe cegam de perto.
Os deuses bocejantes jogam cartas no Olimpo.
Raras vezes, amor, o tempo agrada o corpo.

Alcides Villaça