quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Bárbara



















Chamava-se Bárbara. Tinha vinte e poucos anos. Era muito magra, alta, não sofria do estômago, tinha unhas e cabelos fortes, um sorriso memorável, uma pele muito branca. Não tinha nem asma nem qualquer doença respiratória. Não se lembrava da última vez que tinha tido azia e tinha a menstruação regular. Quase não bebia e quando o fazia optava pelo whisky - ou para se sentir diferente do que se sentia ser, ou para pertencer ao grupo de homens mais velhos (artistas, arquitectos, cineastas) com quem, ocasionalmente saia devido ao estágio de assistente de curadoria que tinha conseguido. De manhã penteava o cabelo, vestia-se de acordo com o que a "arte" pedia e na sua assombrosa timidez saía de casa. Na porta, tinha pendurado um fato cinzento e amarelo que só ela via. Era um fato que Bárbara vestia, sempre, antes de sair. Ele entranhava-se na pele até fazer completamente parte dela. Ninguém o via. Na verdade, ninguém sabia da existência dele. Só ela, que sabe dele desde que se lembra de si. Bárbara era um super-herói e o seu super-poder era a imortalidade. Todos os dias, ao embrenhar-se na sua pele, aquele fato sugava-lhe a visão o seu fim! Ela vivia, caminhava, sorria, falava, nadava, comia, sempre na certeza que nada lhe aconteceria. 

Nesse mesmo dia, que agora vos conto, Bárbara tinha um desses jantares de whisky, à noite, depois da inauguração de uma exposição da galeria onde estagiava. O sentimento por aquelas pessoas era misto. Por umas tinha uma profunda admiração, por outras o maior desprezo. Mateus Reisser era o artista que mais mexia com ela. A sua admiração misturava-se com uma paixão secreta por aquele homem de quarenta e poucos anos... (perdoe-me quem me ler, mas decifrar idades não é o meu forte). Bárbara tinha um desejo forte de mergulhar na tinta dos quadros de Mateus e nas palavras da sua boca para se transformar em camélias brancas - as suas favoritas. Sonhava, fantasiava com ele, de barba grisalha aparada... com o dia em que seria sua mulher, com o dia que tivessem um filho, com o dia em que trocassem tanta cumplicidade que ele percebesse, na sua pele, a sua imortalidade. Mas eram fantasias e segredos que guardava só para si... (no fundo acreditava que se Mateus descobrisse que ela era um super-herói iria achá-la uma suprema aberração!)

A inauguração decorrera igual a tantas outras: sempre uma velha de cabelo vermelho e óculos pretos acompanhada de um qualquer marido sem sal, gay e oportunista (ela completamente bêbada quinze minutos após ter chegado); os artistas cocainados que sabiam que na década de setenta a cocaína era o que dominava o mundo underground da arte (Bárbara limitava-se a achar uma grande falta de originalidade dos artistas, 40 anos depois, ainda andarem a cheirar cocaína na esperança de uma repetição inglória - ou à espera de quê, afinal?). Os homens de fato-de-treino, compradores de arte e com piadas baixas também lá estavam e ao fundo: Mateus! Com um charme único, vestido de castanho, melhor que qualquer pessoa daquela sala (assim dizia o seu coração) respirava despido de preconceitos e por isso era ainda mais atraente. Bárbara sorriu-lhe. Apenas. Mas naquela noite teve uma surpresa: Mateus aproximou-se dela. Sorriu-lhe de volta e pediu-lhe para irem ao "Loucos e Sonhadores", só os dois, beber um copo. Aceitou. 

Já no bar, em que se descia três degraus para entrar e os cigarros eram oferta da casa, os dois pediram whisky. Bárbara fumou 5 cigarros - não pensou, obviamente, em câncro de pulmão. Fumou-os uns atrás dos outros tamanha era a vontade de se proteger (de si?). 
Conversaram sobre o poder da mão humana na sociedade atual, sobre as barreiras invisíveis (como o seu fato) em Jerusalém, a força da ilusão aliada à imaginação e no final seguiram para conversas terrenas (sempre tão bem vindas, pensava Bárbara). O seu coração estava vermelho!! Não fosse ter a sua imortalidade garantida e quase que diria que morria, ali, de ardor. Entre o calor da conversa, dos sorrisos e do whisky sairam abraçados do bar. Mateus perguntou-lhe se queria continuar a noite em casa dele sabendo, pelo olhar de Bárbara, que a resposta era sim. Pediu-lhe que esperasse por ele onde estavam pois ia buscar o carro do outro lado da rua. Os olhos de Bárbara não descolaram dele um segundo. Acompanharam todo o seu movimento desde que saiu de ao pé de si até ao embate do corpo dele com um Mercedes preto que seguia em alta velocidade. Aí, fechou os olhos com muita força e sentiu, na fração de segundos que levou a abri-los de novo, que não queria ver a imagem seguinte. Bárbara tinha acabado de assistir ao fim do som e da imagem de Mateus. O que fazer com essa verdade? Perguntava-se isso, sem saber que o fazia. Caminhou enrugada em si, na direção do acidente. Ah! Era uma tal de dor de perda misturada com alívio, que estava a sentir, pensava Bárbara enquanto se ajoelhava junto do corpo deitado no alcatrão. Alívio untado com uivos de dor de separação eterna e a celebração de nunca ter chegado, sequer, a falhar com ele.

Dois dias depois Bárbara vestiu-se de preto para o funeral. Queria sair de casa, mas pela primeira vez na vida não encontrou o seu fato de super-herói e isso impedia-a de o fazer. Procurou atrás da porta, revirou o quarto e a casa de banho mas o fato amarelo e cinza tinha desaparecido. Nunca tinha saído de casa sem ele. Sentou-se por momentos. Breves. Sem casca. Sem proteção. E saiu.

Percebeu que sentiu medo do próprio corpo. Medo de si, dos outros que caminhavam em sua volta, dos carros, dos sons que ouvia. Não se conhecia. Sentia dores pontiagudas no corpo. Doía-lhe o pâncreas - que nem sabia onde era - sentia o estômago, o fígado a gritarem com ela. Estava com falta de ar. Não entendia a debilidade a que um corpo podia chegar só com o poder da mente. Não sabia que era possível ser tão frágil e queria caminhar para aprender.

Perguntava-se, agora, se conseguia aguentar a efemeridade mas estava apavorada pelo silêncio que se seguia a uma pergunta sem resposta. 

Voltou para casa.

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