terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Anotações sobre as Cores


Imaginemos um povo de daltónicos, o que pode bem acontecer. Não teriam os mesmos conceitos de cor que nós. Supondo que falariam, por exemplo, alemão e teriam assim as palavras alemãs para as cores, usá-las-iam diferentemente de nós e aprenderiam a usá-las também de forma diferente. Ou se tivessem uma língua estrangeira, ser-nos-ia difícil traduzir as suas palavras de cor para as nossas.


Ludwig Wittgenstein, "Anotações sobre As Cores", (1988)

sábado, 21 de dezembro de 2013

o ritual é bonito

O ritual é bonito.
Entramos no Mercado Central e damos de cara com as empadas de milho. Nem sempre há, mas quando há comemos de pé a olhar um para o outro.
Depois, seguimos pelo labirinto. 
Cheiros de toda a espécie surgem enquanto, perdidos, tentamos achar a banca do açaí. 
O ritual é bonito. Banana. Granola. Ultimamente peço chocolate mas acabo sempre por não adicionar e ele fica perdido na mesa. 
Saímos e está sempre sol. Lá fora já não há ritual. Só nós que somos ritual de nós próprios. Ritual um do outro. Há meses que nos fazemos parte e olhamos nos olhos, que se modificam a cada dia. 
A minha mãe diz-me para eu levar para Portugal algo que eu goste aqui e que não haja lá. Só açaí, empada de milho e um ritual de olhar nos olhos dele. 
Está frio para o açaí, está frio para a empada de milho e há saudade para os olhos que ficam e anseiam se encontrar de novo.

Novembro de 2013

reencontro

diz-me que
não leve o vinho

que os fios de nós
precisam de outro tear

de agulhas mais fortes
que os teçam em voz

em dádiva talvez

diz-me
que leve as palavras
as mais guardadas

aquelas que  a pele
do tempo não suou

as que gelam no
grave segredo do olhar

e que leve as mãos
e que elas falem

que voltem a dançar
na sua mão

ou mais perto
muito mais perto

gil t. sousa

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Ai Camané... (suspirando!)



Ai, Margarida, 
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?

- Tirava os brincos do prego,
Casava c'um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria a tua mãe?
- (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
- Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
- Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Can Our Love

Onde é a Alemanha?

- Onde é a Alemanha?
Pergunta ela ao seu pai, trabalhador emigrante na Alemanha. O pai responde: "Ali, do outro lado." 
Sentimos que para a criança "ali ao lado" começa mesmo ali, na próxima curva do rio. No fim do mundo, no meio do mundo.

Serge Daney, Libeération, 1983




































Trás-os-Montes, António Reis, 1976

O beijo

Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas os olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
vagamente mas em toda a parte

Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo

Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.


paul éluard
poemas de amor e de liberdade
trad. egito gonçalves
campo das letras
2000

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Perguntas Abandonadas #1

Para onde irão depois as coisas que aprendi?
Por exemplo: aquele cálculo de pi.
Que será feito daqueles restos de saudade,
destes medos antigos sempre novos?
Em que voltas desaparecerão os sonhos
que enfeitaram de flores o quintal antigo?
Por que caminhos irão andar aqueles ágeis pés?
Sobretudo, como se esvaziará de som a velha voz
e onde afundará o último verde daquela flama esguia?

Abgar Renault, "Obra Poética", 1990

Foto: Augusto Barros, Rio de Janeiro - Nov.2013

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Jim Jarmusch’s 5 Golden Rules (or non-rules) of Moviemaking

Rule #1: There are no rules. There are as many ways to make a film as there are potential filmmakers. It’s an open form. Anyway, I would personally never presume to tell anyone else what to do or how to do anything. To me that’s like telling someone else what their religious beliefs should be. Fuck that. That’s against my personal philosophy—more of a code than a set of “rules.” Therefore, disregard the “rules” you are presently reading, and instead consider them to be merely notes to myself. One should make one’s own “notes” because there is no one way to do anything. If anyone tells you there is only one way, their way, get as far away from them as possible, both physically and philosophically.

Rule #2: Don’t let the fuckers get ya. They can either help you, or not help you, but they can’t stop you. People who finance films, distribute films, promote films and exhibit films are not filmmakers. They are not interested in letting filmmakers define and dictate the way they do their business, so filmmakers should have no interest in allowing them to dictate the way a film is made. Carry a gun if necessary.
Also, avoid sycophants at all costs. There are always people around who only want to be involved in filmmaking to get rich, get famous, or get laid. Generally, they know as much about filmmaking as George W. Bush knows about hand-to-hand combat.

Rule #3: The production is there to serve the film. The film is not there to serve the production. Unfortunately, in the world of filmmaking this is almost universally backwards. The film is not being made to serve the budget, the schedule, or the resumes of those involved. Filmmakers who don’t understand this should be hung from their ankles and asked why the sky appears to be upside down.

Rule #4: Filmmaking is a collaborative process. You get the chance to work with others whose minds and ideas may be stronger than your own. Make sure they remain focused on their own function and not someone else’s job, or you’ll have a big mess. But treat all collaborators as equals and with respect. A production assistant who is holding back traffic so the crew can get a shot is no less important than the actors in the scene, the director of photography, the production designer or the director. Hierarchy is for those whose egos are inflated or out of control, or for people in the military. Those with whom you choose to collaborate, if you make good choices, can elevate the quality and content of your film to a much higher plane than any one mind could imagine on its own. If you don’t want to work with other people, go paint a painting or write a book. (And if you want to be a fucking dictator, I guess these days you just have to go into politics…).

Rule #5: Nothing is original. Steal from anywhere that resonates with inspiration or fuels your imagination. Devour old films, new films, music, books, paintings, photographs, poems, dreams, random conversations, architecture, bridges, street signs, trees, clouds, bodies of water, light and shadows. Select only things to steal from that speak directly to your soul. If you do this, your work (and theft) will be authentic. Authenticity is invaluable; originality is nonexistent. And don’t bother concealing your thievery—celebrate it if you feel like it. In any case, always remember what Jean-Luc Godard said: “It’s not where you take things from—it’s where you take them to.”

domingo, 10 de novembro de 2013

dança

Pergunto onde está a Inquisição e eles mandam-me ajoelhar, prometer. Perguntam-me então, eles, que são quem manda, se sei dançar tarantela - que é uma dança que se deve dançar depois de se apanhar uma picada de um insecto mortal; uma dança que salva de uma picada. Digo que não acredito, que vim da Europa onde se dança por outras razões. Mas sim, dizem-me que é a verdade, a tarantela, e obrigam-me a dançar -, eu que estou aqui para passear e não para ser curado. Avanças e o jogo é este: a própria vítima tem de dançar para se salvar, não interessa o que fazem os mais próximos, és tu, que foste picado, que tens de dançar, não os outros. 

(...)

Gonçalo M. Tavares in Canções Mexicanas 
Telefonema

sábado, 9 de novembro de 2013

poesia

1. 

Tenho pedras no bolso.
Muitas pedras no bolso.
Troco duas pedras por uma máquina de pensar.
Quando penso dói-me a cabeça.
Daí as pedras.
Tenho 5 pedras porque penso mal 5 vezes.
Tenho 5 pedras nos bolsos.

Quero viajar.
Mas para viajar é necessário ser leve.
As pedras são pesadas.
Não consigo viajar com tantas pedras.
Tenho tantas pedras dentro da cabeça, dentro do crânio.
Total: 5.
Daí o meu peso.
Impossível viajar com tanto peso.

Quero comprar uma máquina que pense por mim.
Tenho o livro de um filósofo. 
Tenho 2 livros de um filósofo.
Um livro é uma máquina que pensa por mim
e é uma máquina barata.
Mas eu não quero que pensem por mim sempre
da mesma maneira.
O mesmo livro pensa sempre da mesma maneira.
Se eu fechar o livro, calo-me, e as pedras pesam-me
mais no crânio.
Se eu abrir o livro começo a falar, mas digo sempre
a mesma coisa.

Alguém me disse que um livro de poesia é diferente.
É uma máquina muito mais rápida.
A cada vez que passa, passa de outra maneira.
Deve ter pés estranhos.
Pés adaptáveis à terra
Ou então capazes de a dominar.
De resto nunca li um livro de poesia.
Sou demasiado homem para isso.
Sou demasiado contemporâneo: trabalho muito.
Ler poesia para quê?
Eu trabalho muito, sou contemporâneo. Ler poesia para quê?


Gonçalo M. Tavares in O Homem ou é Tonto ou é Mulher

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

#2 Diário

Hoje ouvi a voz dos meus queridos avós. 
Primeiro ele, sempre ele primeiro, contando coisas quotidianas: das duas frutarias que tinham ido, do lanche nas "Estrelas Brilhantes", das compras no supermercado, dos óculos novos da avó.
Depois ela, surpreendentemente alegre... feliz de me ouvir. Relembra-me das "sol"dadinhas que tem minhas... dos "ai que maravilha" que gritávamos quando vinha uma onda no mar...

As vozes são muito ternas, e eu imagino-os na pequena salinha do telefone: de sofás escuros, janela alta de águas furtadas com cortina branca a ouvirem-se, a ouvirem-me com o coração a bater de segundo em segundo. Consigo ouvir os corações deles, aqui de longe, e peço-lhes, carinhosamente, que não se modifiquem até à minha chegada... porque partir sozinha para ir viver noutro país distante é errar achando que tudo fica igual...

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Pai, pai, aonde é que vais?
Oh!, não andes tão depressa.
Diz, diz, pai diz-me onde vais
Ou vou perder-me não tarda.

William Blake, “Cantigas da Inocência e da Experiência”, Antígona, 2007

domingo, 3 de novembro de 2013

Vestido Preto, Nuvens Laranja


Ontem acordei com a voz. Uma voz que me secou a garganta. Uma tosse...
Era de noite ainda. Ergui um pouco a coluna, bebi água e voltei a dormir. 
Sentia as pernas doerem-me de tanto cansaço. Sentia o cérebro escorrer-me pelo pescoço até chegar à barriga.

Acordei numa tristeza que me envolvia todo o corpo, que caminhava dentro de mim, em cada gesto, cada olhar.
Fiz a cama. Estava calor. 
Olhei-me no espelho e voltei para trás. Troquei o que tinha por um vestido preto. Vesti umas meias pretas também. Saí de casa, não olhei para trás. Arrependi-me disso. Sei que carregava aquele peso dentro de mim, aquele peso que tem chegado... que tem chegado... que tem chegado...

A foto de perfil do skype da minha irmã é um quadradinho preto. Ela liga-me. Há meses que não o fazia. Olho o quadradinho preto sobre o quadrado preto e surge a voz dela: "Rita... tenho de falar baixinho...". Começo a imaginá-la dentro de uma mina, debaixo da terra, no escuro, num lugar apertado. Rio-me e digo "Ok, porquê?"; "Porque eles estão lá em baixo e não posso fazer barulho."; "Lá em baixo?"; "Sim..."; Depois conta-me o que aconteceu naquela noite. E revela-me que o lugar onde estava era o topo de umas escadinhas na igreja de Campo de Ourique.

Não mudou nada. O céu faz-se azul, como ontem, como antes de ontem. As nuvens são enormes, lá ao longe, de cor laranja.... Eu caminho da mesma forma. Olho da mesma forma? Não sei. 
Ela não está mais aqui, mas o que está aqui, está. E está da mesma maneira, igual.
Inesperadamente, parece que cada partida se faz cheia de poesia. Mesmo sem se ser poeta...

Vejo as minhas mãos, de regresso a casa, e reparo como pesam. Como me pesam. Sinto o peso do meu corpo. 
Uma força qualquer luta dentro dele. Contra ele. Nos últimos dias é assim. Saudade de um abraço quente. Saudade daquele abraço. E daquele. Daquele olhar, e daquele...
Não sei de onde vem essa luta. Se é o meu espaço interno contra o externo, se uma emoção no meio dos dois, que torna tudo da cor do meu vestido neste dia. 

# para a minha querida avó que mexeu no meu mundo aqui distante e partiu sem se despedir.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

al berto

(…)

Chegava a qualquer cidade e alugava dois ou três quartos, distantes uns dos outros, mas nunca pernoitava duas vezes de seguida no mesmo.

Em todos eles simulava viver há muito tempo. Num, espalhava bugigangas de plástico, compradas aos vendedores ambulantes, sobre os poucos desengonçados móveis. Noutro, pendurava roupa nos pregos que tinham servido para pendurar estampas baratas, e que alguém se dera ao incómodo de roubar.

Por vezes, deitado, olhava para os pregos espetados nas paredes e tentava perceber o que levava alguém a roubar aquelas arrumadinhas paisagens suíças que, infalivelmente, decoravam os quartos das pensões. E adormecia a pensar que no outro quarto cobrira as paredes com fotografias, e era nesse quarto que lhe apetecia estar.

(…)

al berto
lunário
assírio & alvim
1999


-----------//-----------


II

Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para o outro.
Canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
Lá fora, dentro da noite, os chacais... as hienas cercam a casa.
Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras,
esta hiena que me devora o sonho.

(...)


al berto
primeira estrofe de filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997 

Senhor...

Senhor, o amor é uma coisa que mete medo
não sabeis pois que se trata de um trabalho difícil
exige uma coragem e uma fé além do improvável
uma humanidade indizível
uma fraternidade cega
dinheiro e garrafas
crianças ao acaso
olhares nem sequer fulminantes
e charcos de céu
e festas campestres
quando o tempo permite
o amor quer idas à pesca, patins e chocolate negro
o amor quer a curva suave e a facilidade
é tão difícil, Senhor
não poderia descrevê-lo
em toda a sua volúpia
para lá dos seus mártires
e dos seus desastres hipócritas
o amor é pleno de alegria
e segue o seu caminho
na névoa dos primeiros passos
na roupa pendurada no inverno
na corda tensa
vai para onde calha
e muito lentamente
lentamente demais o amor segue
como um ouriço do mar oco cheio de areia
como um botão que se deixa por coser
é miserável
é uma pluma
move-se ao vento
quando o coração bate
é esplêndido lavado pela maré
mesmo na maré odiosa
é onda
e é belo
é onda e é belo e cheio de algas
é o silêncio
é a luz
uma coisa assim vulgar

Hélène Monette

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Viagem ao Fim da Noite

Perdemos a maior parte da nossa mocidade em actos desastrados. Era evidente que a minha amada viria a abandonar-me por completo e em breve. E eu não tinha ainda aprendido que existem duas humanidades muito diferentes, a dos ricos e a dos pobres. Foram-me precisos como a tantos outros os meus vinte anos e ainda a guerra, para aprender a manter-me de acordo com a minha categoria, a perguntar o preço das coisas e dos seres antes de lhes tocar, e sobretudo antes de me prender a eles.

Céline, "Viagem ao Fim da Noite", Círculo de Leitores, 1989

Out takes From the Life of a Happy Man

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

com todo o amor, trouble every day.



Look into my eyes
You see trouble every day
It’s on the inside of me
So don’t try to understand
I get on the inside fo you
You can blow all away

Such a slightest breath
And I know who I am

Look into my eyes
Hear the words I can’t say
Words that defy
And they scream it out loud

I get on the inside of you
You can wave it all away
Such a slightest thing
It’s just the rise of your hand

(...)

domingo, 20 de outubro de 2013

De hoje

De vez em quando a angústia volta, e o alarme, e um pavor todavia calmo e obscuro. E aí, um prazer amargo e uma grande plenitude enche-me a alma. Não me agito por dentro quando esse alarme me visita, não me suspendo em intensa expectativa. Mas também não me sinto alegre. A alegria imediata, a que estala em riso como sua festa, é a que tem que ver com essa coisa um pouco idiota de se ser "feliz". A alegria profunda não ri e conhece apenas, se conhece, a profunda pacificação. Como no termo de uma viagem. Como no termo de um dia na infância, estoirados de cansaço, a verdade absoluta da vida e do universo é apenas a do adormecer.


Vergílio Ferreira, "Pensar", Bertrand Editora, 1992
Jonas Mekas





















sábado, 19 de outubro de 2013

A falta de Manuel A. Pina

Aos Filhos

Já nada nos pertence,
nem a nossa miséria.
O que vos deixaremos
a vós o roubaremos.

Toda a vida estivemos
sentados sobre a morte,
sobre a nossa própria morte!
Agora como morreremos?

Estes são tempos de
que não ficará memória,
alguma glória teríamos
fôssemos ao menos infames.

Comprámos e não pagámos,
faltámos a encontros:
nem sequer quando errámos
fizemos grande coisa! "

Manuel António Pina, in "Um Sítio onde Pousar a Cabeça"

terça-feira, 1 de outubro de 2013

uma paixão imensa por ela, pelo que diz e pelo que faz

MARTEL: In a way, post-production is less happier than the shooting, because the shooting is like a party. [Shooting] is all together—for me it is like a party. In post-production, you are alone with someone; it’s not like a party! It’s work. It’s not the moment I enjoy the most; there’s a lot of decisions you have to take and you have to leave a lot of things [out of the film]. For me, it is a more bitter moment. I think that the joy of my life is writing, and the happiness of the party in the shooting—and then, the work.

in Dread Desert, Part II: a conversation with Lucrecia Martel



quinta-feira, 26 de setembro de 2013

"As coisas mudaram muito"

Quando se deixa uma terra por outra, se vivemos com entendimento e força de alma, deixamos o nosso espectro um pouco por toda a parte. É como morrer de maneira incorrupta, mas com igual arranque de saudade.
O caminho que faço todos os dias percorri-o hoje com distracção novelesca; e o que eram encontros muitas vezes sem agrado - pobres ou jardineiros, ou gente de ambíguos afazeres e tristezas - tornou-se de repente, já no espírito da distância, figuras reparadas, profundas, merecidas.

Agustina Bessa Luís in "Conversações com Dmitri e outras fantasias"

1979

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Vai o movimento...

Mas se voltarmos apenas um pouco que seja para as fontes respiratórias, plásticas, activas, da linguagem, se relacionarmos as palavras com os movimentos físicos que lhes deram origem, se o aspecto lógico e discursivo da palavra desaparecer sob seu aspecto físico e afectivo, isto é, se as palavras ao invés de serem consideradas apenas pelo que dizem gramaticalmente falando forem ouvidas sob o seu ângulo sonoro, forem percebidas como movimentos, (...) a linguagem da literatura se recomporá, se tornará viva; e ao lado disso, como nas telas de alguns velhos pintores, os objectos por-se-ão a falar.

Antonin Artaud, Carta a Jean Paulhan
28/05/1933

domingo, 22 de setembro de 2013

instant. andrebaumecker.

http://instant.andrebaumecker.com/

http://instant.andrebaumecker.com/

a minha intimidade é pequena

a minha intimidade é pequena
cabe na minha boca
e desliza por entre os dentes;

se a descubro a fingir que é saliva
engulo-a,
não quero vê-la alheia nas palavras
nem perdê-la com um beijo.

ana merino



       Josef Koudelka  NORTHERN-IRELAND-  1978

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

¡Qué bonito es un entierro!



Era uma vez, há muito tempo, uma maravilhosa cidade chamada Tar.
Neste tempo, todas as cidades estavam intactas não havia ruínas pois a guerra final não havia começado. Quando ocorreu a grande catástrofe, sucumbiram todas as cidades, menos Tar. 
Ainda existe Tar.

Se sabes onde a procurar, vais encontrá-la.

Alcançando Tar, ir-te-ão trazer vinho e água e poderás brincar com uma caixa de música à manivela.
Em Tar, ajudarás a colheita nas vinhas e recolherás os escorpiões que se ocultam sob a pedra branca.

Chegando a Tar, conhecerás a eternidade e verás um pássaro que bebe uma gota da água do oceano a cada cem anos.

Uma vez em Tar, compreenderás a vida e te tornarás um gato, um fénix, um cisne, e elefante, e criança e ancião.

Estarás só e acompanhado,
Amarás e serás amado,
Estarás aqui e lá.

O teu será o seio dos seios.

À medida que se aproxima  o futuro, sentirás que o êxtase te esmaga...

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Conhecer alguém

A descoberta do prazer de conhecer alguém.
A descoberta do prazer de se dar a conhecer a alguém.

Em instantes tão longos que ficam para sempre.

.... //....

De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre a começar, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo da dança, do medo uma escada, do sonho uma ponte, da procura um encontro.
F. Sabino

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

domingo, 8 de setembro de 2013

O Calmante

Não sei quando morri. Sempre me pareceu que morri velho, por volta dos noventa anos, e que anos, e que o meu corpo o comprovava, da cabeça aos pés. No entanto, neste final de tarde, sozinho na minha cama gelada, sinto que vou ser mais velho do que o dia, do que a noite em que o céu caiu com todas as suas luzes sobre mim, o mesmo céu que tantas vezes olhei, desde que vagueava pela terra longínqua. Porque hoje tenho medo demais para me ouvir apodrecer, para esperar pelos grandes e violentos baques do coração, pelas contorções do ceco sem saída e para esperar que se cumpram na minha cabeça os longos assassínios, o assalto aos pilares inquebrantáveis, o amor com os cadáveres. Vou portanto contar a mim mesmo uma história, vou portanto tentar contar mais uma vez a mim mesmo uma história, para tentar acalmar-me, e é nessa história que sinto que serei velho, muito velho, ainda mais velho do que no dia em que caí, clamando por socorro, e o socorro chegou. Ou talvez nessa história eu tenha regressado à terra, depois de morrer. Não, não é o meu género, regressar à terra, depois de morrer.

(…)

samuel beckett
novelas e textos para nada

Frame: 
Prénom, Carmen de Jean Luc Godard

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Elegia

Bebemos às escondidas
Em copos intactos
Vinho que talvez
Fosse para nós.

Bebemos às escondidas
Por entre as turbas
Que se moviam para o sol.

Era à saída dos nossos labirintos
E faltava-nos firmeza nas mãos.

As delícias do azul reservavam-se para a colina,
o cimo das árvores
E o ocioso gavião.

Tivemos a nossa hora e julgámos possível
Proteger as planícies e o próprio espaço.

Amámos às escondidas
E soubemos que não pode curar-se
Em pouco tempo alegria excessiva.

guillevic
élégie, fxécutoire (1947)
vozes da poesia europeia III

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

sábado, 17 de agosto de 2013

Desafío



Chus Domínguez é um realizador e artista visual muitas vezes na órbita do cinema documental. Desde o início da década passada peças íntimas de duração muito variável preenchem o seu caminho fílmico, baseadas na observação do mágico ou estranho, capturando aquele instante especial, construindo notas diárias. 


Ventimiglia, en la frontera entre Francia e Italia.
Comenzamos, modestamente,  a seguir la huella de PPP.


- chusdominguez.com

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Leis tácitas de Harun Farocki

1. Nunca deixar que um ator atue o próprio despertar. 
2. Sempre valorizar um filme de ficção por suas qualidades documentais. 
3. Se se mostra alguém preparando a comida, sempre mostrá-lo depois lavando os pratos. 
4. Nunca usar "Fratres" de Arvo Pärt como trilha sonora.
5. Nunca usar imagens dos campos de extermínio sem datá-las com precisão.
6. Se alguém é homem e escreve um roteiro com uma personagem feminina, nunca esquecer que é homem.
7. Nunca esquecer de mostrar o que a câmera não pode filmar.
8. Nunca usar câmera lenta para conseguir efeitos poéticos.
9. Se há um novo regime de imagens no mundo, nunca esquecer de mostrá-lo.
10. Nunca fazer primeiríssimos planos de rostos falando.
11. Sempre fazer listas.