domingo, 10 de novembro de 2013

dança

Pergunto onde está a Inquisição e eles mandam-me ajoelhar, prometer. Perguntam-me então, eles, que são quem manda, se sei dançar tarantela - que é uma dança que se deve dançar depois de se apanhar uma picada de um insecto mortal; uma dança que salva de uma picada. Digo que não acredito, que vim da Europa onde se dança por outras razões. Mas sim, dizem-me que é a verdade, a tarantela, e obrigam-me a dançar -, eu que estou aqui para passear e não para ser curado. Avanças e o jogo é este: a própria vítima tem de dançar para se salvar, não interessa o que fazem os mais próximos, és tu, que foste picado, que tens de dançar, não os outros. 

(...)

Gonçalo M. Tavares in Canções Mexicanas 
Telefonema

sábado, 9 de novembro de 2013

poesia

1. 

Tenho pedras no bolso.
Muitas pedras no bolso.
Troco duas pedras por uma máquina de pensar.
Quando penso dói-me a cabeça.
Daí as pedras.
Tenho 5 pedras porque penso mal 5 vezes.
Tenho 5 pedras nos bolsos.

Quero viajar.
Mas para viajar é necessário ser leve.
As pedras são pesadas.
Não consigo viajar com tantas pedras.
Tenho tantas pedras dentro da cabeça, dentro do crânio.
Total: 5.
Daí o meu peso.
Impossível viajar com tanto peso.

Quero comprar uma máquina que pense por mim.
Tenho o livro de um filósofo. 
Tenho 2 livros de um filósofo.
Um livro é uma máquina que pensa por mim
e é uma máquina barata.
Mas eu não quero que pensem por mim sempre
da mesma maneira.
O mesmo livro pensa sempre da mesma maneira.
Se eu fechar o livro, calo-me, e as pedras pesam-me
mais no crânio.
Se eu abrir o livro começo a falar, mas digo sempre
a mesma coisa.

Alguém me disse que um livro de poesia é diferente.
É uma máquina muito mais rápida.
A cada vez que passa, passa de outra maneira.
Deve ter pés estranhos.
Pés adaptáveis à terra
Ou então capazes de a dominar.
De resto nunca li um livro de poesia.
Sou demasiado homem para isso.
Sou demasiado contemporâneo: trabalho muito.
Ler poesia para quê?
Eu trabalho muito, sou contemporâneo. Ler poesia para quê?


Gonçalo M. Tavares in O Homem ou é Tonto ou é Mulher

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

#2 Diário

Hoje ouvi a voz dos meus queridos avós. 
Primeiro ele, sempre ele primeiro, contando coisas quotidianas: das duas frutarias que tinham ido, do lanche nas "Estrelas Brilhantes", das compras no supermercado, dos óculos novos da avó.
Depois ela, surpreendentemente alegre... feliz de me ouvir. Relembra-me das "sol"dadinhas que tem minhas... dos "ai que maravilha" que gritávamos quando vinha uma onda no mar...

As vozes são muito ternas, e eu imagino-os na pequena salinha do telefone: de sofás escuros, janela alta de águas furtadas com cortina branca a ouvirem-se, a ouvirem-me com o coração a bater de segundo em segundo. Consigo ouvir os corações deles, aqui de longe, e peço-lhes, carinhosamente, que não se modifiquem até à minha chegada... porque partir sozinha para ir viver noutro país distante é errar achando que tudo fica igual...

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Pai, pai, aonde é que vais?
Oh!, não andes tão depressa.
Diz, diz, pai diz-me onde vais
Ou vou perder-me não tarda.

William Blake, “Cantigas da Inocência e da Experiência”, Antígona, 2007

domingo, 3 de novembro de 2013

Vestido Preto, Nuvens Laranja


Ontem acordei com a voz. Uma voz que me secou a garganta. Uma tosse...
Era de noite ainda. Ergui um pouco a coluna, bebi água e voltei a dormir. 
Sentia as pernas doerem-me de tanto cansaço. Sentia o cérebro escorrer-me pelo pescoço até chegar à barriga.

Acordei numa tristeza que me envolvia todo o corpo, que caminhava dentro de mim, em cada gesto, cada olhar.
Fiz a cama. Estava calor. 
Olhei-me no espelho e voltei para trás. Troquei o que tinha por um vestido preto. Vesti umas meias pretas também. Saí de casa, não olhei para trás. Arrependi-me disso. Sei que carregava aquele peso dentro de mim, aquele peso que tem chegado... que tem chegado... que tem chegado...

A foto de perfil do skype da minha irmã é um quadradinho preto. Ela liga-me. Há meses que não o fazia. Olho o quadradinho preto sobre o quadrado preto e surge a voz dela: "Rita... tenho de falar baixinho...". Começo a imaginá-la dentro de uma mina, debaixo da terra, no escuro, num lugar apertado. Rio-me e digo "Ok, porquê?"; "Porque eles estão lá em baixo e não posso fazer barulho."; "Lá em baixo?"; "Sim..."; Depois conta-me o que aconteceu naquela noite. E revela-me que o lugar onde estava era o topo de umas escadinhas na igreja de Campo de Ourique.

Não mudou nada. O céu faz-se azul, como ontem, como antes de ontem. As nuvens são enormes, lá ao longe, de cor laranja.... Eu caminho da mesma forma. Olho da mesma forma? Não sei. 
Ela não está mais aqui, mas o que está aqui, está. E está da mesma maneira, igual.
Inesperadamente, parece que cada partida se faz cheia de poesia. Mesmo sem se ser poeta...

Vejo as minhas mãos, de regresso a casa, e reparo como pesam. Como me pesam. Sinto o peso do meu corpo. 
Uma força qualquer luta dentro dele. Contra ele. Nos últimos dias é assim. Saudade de um abraço quente. Saudade daquele abraço. E daquele. Daquele olhar, e daquele...
Não sei de onde vem essa luta. Se é o meu espaço interno contra o externo, se uma emoção no meio dos dois, que torna tudo da cor do meu vestido neste dia. 

# para a minha querida avó que mexeu no meu mundo aqui distante e partiu sem se despedir.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

al berto

(…)

Chegava a qualquer cidade e alugava dois ou três quartos, distantes uns dos outros, mas nunca pernoitava duas vezes de seguida no mesmo.

Em todos eles simulava viver há muito tempo. Num, espalhava bugigangas de plástico, compradas aos vendedores ambulantes, sobre os poucos desengonçados móveis. Noutro, pendurava roupa nos pregos que tinham servido para pendurar estampas baratas, e que alguém se dera ao incómodo de roubar.

Por vezes, deitado, olhava para os pregos espetados nas paredes e tentava perceber o que levava alguém a roubar aquelas arrumadinhas paisagens suíças que, infalivelmente, decoravam os quartos das pensões. E adormecia a pensar que no outro quarto cobrira as paredes com fotografias, e era nesse quarto que lhe apetecia estar.

(…)

al berto
lunário
assírio & alvim
1999


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II

Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para o outro.
Canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
Lá fora, dentro da noite, os chacais... as hienas cercam a casa.
Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras,
esta hiena que me devora o sonho.

(...)


al berto
primeira estrofe de filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997 

Senhor...

Senhor, o amor é uma coisa que mete medo
não sabeis pois que se trata de um trabalho difícil
exige uma coragem e uma fé além do improvável
uma humanidade indizível
uma fraternidade cega
dinheiro e garrafas
crianças ao acaso
olhares nem sequer fulminantes
e charcos de céu
e festas campestres
quando o tempo permite
o amor quer idas à pesca, patins e chocolate negro
o amor quer a curva suave e a facilidade
é tão difícil, Senhor
não poderia descrevê-lo
em toda a sua volúpia
para lá dos seus mártires
e dos seus desastres hipócritas
o amor é pleno de alegria
e segue o seu caminho
na névoa dos primeiros passos
na roupa pendurada no inverno
na corda tensa
vai para onde calha
e muito lentamente
lentamente demais o amor segue
como um ouriço do mar oco cheio de areia
como um botão que se deixa por coser
é miserável
é uma pluma
move-se ao vento
quando o coração bate
é esplêndido lavado pela maré
mesmo na maré odiosa
é onda
e é belo
é onda e é belo e cheio de algas
é o silêncio
é a luz
uma coisa assim vulgar

Hélène Monette