terça-feira, 21 de agosto de 2018

Ontem
morreu a puta mais velha
da vila. 

Tinha cabelos brancos,
um dente de ouro
e uma foto adolescente.
Nunca reclamou do tempo,
do governo
e do preço das coisas. 

Mas, desconfio, tinha desertos dentro de si. 

Foi vista um dia
Olhando uma nuvem. 
Gostava de um vestido vermelho
que nem lhe servia mais. 
Quando ela morreu
dois negrinhos barrigudos
olhavam o incêndio
num monte de lixo. 

Dizem que foi a paixão
de um importante político
nos anos 40. 

Teve jóias,
roupa nova,
convite pra festas
e pneumonia. 

Sobraram-lhe as rugas:
michê de fim de expediente.
Votou em Getúlio
e sempre respeitou a sexta-feira santa 
Paixão ela teve duas
Um manco de bigodinho
e um outro que voltou pro Norte. 

O esmalte no dedão descascava
Como descascam certos dias
e a gente não vê. 

Morreu só
a puta mais velha da vila. E uma doença
que quase a matou. Um cara perguntou
se ela era feliz. Outro, por que não casou.
E ela sabia
que um Domingo
rodeada de netos no subúrbio
é também uma prisão. 
Preferiu a cerveja morna
e o São Jorge sobre a cômoda. 

Morreu velha essa puta na vila.
Sem saber a idade ao certo
mas dos setenta chegou perto. 
Morreu numa tarde anônima
com criança olhando incêndio
e cachorro magro
passeando na vila. Tarde comum
com tédio de vestido vermelho
e de varal de vila.
o mesmo tédio
de que é feita a fúria da primavera
e a esperança das putas.


Marçal Aquino

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