E estando juntos destruímos portas
somos o equilíbrio das forças reclinadas
devassamos o corpo como um mito
Alberto de Lacerda
in Labaredas
Tinta da China
2018
E estando juntos destruímos portas
somos o equilíbrio das forças reclinadas
devassamos o corpo como um mito
Alberto de Lacerda
in Labaredas
Tinta da China
2018
Antigamente conseguíamos acreditar nas coisas
invisíveis, nas sombras e nas sombras delas,
numa luz escura e rósea como uma pálpebra.
Ah, as mandíbulas da máquina fotográfica
mordem as imagens. Conseguimos acreditar agora
só no antigamente, exactamente como o pobre
antigamente acreditava em nós, netos e bisnetos,
sonhando que um dia viríamos a sair da armadilha que
em cada geração encenam Danton
e Robespierre, Beria e outros ambiciosos
discípulos. Uma vez que não há refúgio,
há refúgio. Porque as coisas invisíveis
também existem, com sons
que ninguém ouve. Não há
consolação e há consolação, sob o
cotovelo do desejo, lá onde cresceriam
pérolas, se as lágrimas fossem dotadas de memória.
E contudo o patinador não perde o equilíbrio,
saindo às arrecuas do precipício. Contudo
tanto a alvorada como o leiteiro se levantam cedo
e correm na neve, deixando brancas pegadas,
que se enchem de água. Um pequeno pássaro bebe essa água
e canta mais uma vez
salva a desordem das coisas e a ti e a mim
Poderias mergulhar como um só bloco no nada para onde vão os mortos: consolar-me-ia se me legasses as tuas mãos. Apenas as tuas mãos subsistiriam, separadas de ti, inexplicáveis como as dos deuses de mármore que se tornaram pó e cal dos seus próprios túmulos. Elas sobreviveriam aos teus actos, aos miseráveis corpos que acariciaram. Entre as coisas e ti, elas já não seriam intermediários: seriam elas próprias, transformadas em coisas. Voltando a ser inocentes, pois tu já lá não estarias para fazer delas cúmplices, tristes como galgos sem dono, desconcertadas como arcanjos a quem já nenhum deus dá ordens, as tuas mãos vãs repousariam sobre os joelhos das trevas. As tuas mãos abertas, incapazes de dar ou de agarrar qualquer alegria, ter-me-iam deixado cair como uma boneca quebrada. Beijo ao nível do pulso essas mãos indiferentes que a tua vontade já não afasta das minhas; acaricio a artéria azul, a coluna de sangue que outrora, incessante como o jacto de uma fonte, surgia do solo do teu coração. Como pequenos soluços satisfeitos, encosto a cabeça como uma criança, entre as palmas cheias de estrelas, de cruzes, de precipícios daquilo que foi o meu destino.