quarta-feira, 24 de março de 2021

Antigamente

Antigamente conseguíamos acreditar nas coisas

invisíveis, nas sombras e nas sombras delas,

numa luz escura e rósea como uma pálpebra.

Ah, as mandíbulas da máquina fotográfica

mordem as imagens. Conseguimos acreditar agora

só no antigamente, exactamente como o pobre

antigamente acreditava em nós, netos e bisnetos,

sonhando que um dia viríamos a sair da armadilha que

em cada geração encenam Danton

e Robespierre, Beria e outros ambiciosos

discípulos. Uma vez que não há refúgio,

há refúgio. Porque as coisas invisíveis

também existem, com sons

que ninguém ouve. Não há

consolação e há consolação, sob o

cotovelo do desejo, lá onde cresceriam

pérolas, se as lágrimas fossem dotadas de memória.

E contudo o patinador não perde o equilíbrio,

saindo às arrecuas do precipício. Contudo

tanto a alvorada como o leiteiro se levantam cedo

e correm na neve, deixando brancas pegadas,

que se enchem de água. Um pequeno pássaro bebe essa água

e canta mais uma vez

salva a desordem das coisas e a ti e a mim

e ao próprio canto.




adam zagajewski
sombras de sombras
tinta-da-china
2017

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