quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Elegia

Bebemos às escondidas
Em copos intactos
Vinho que talvez
Fosse para nós.

Bebemos às escondidas
Por entre as turbas
Que se moviam para o sol.

Era à saída dos nossos labirintos
E faltava-nos firmeza nas mãos.

As delícias do azul reservavam-se para a colina,
o cimo das árvores
E o ocioso gavião.

Tivemos a nossa hora e julgámos possível
Proteger as planícies e o próprio espaço.

Amámos às escondidas
E soubemos que não pode curar-se
Em pouco tempo alegria excessiva.

guillevic
élégie, fxécutoire (1947)
vozes da poesia europeia III

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

sábado, 17 de agosto de 2013

Desafío



Chus Domínguez é um realizador e artista visual muitas vezes na órbita do cinema documental. Desde o início da década passada peças íntimas de duração muito variável preenchem o seu caminho fílmico, baseadas na observação do mágico ou estranho, capturando aquele instante especial, construindo notas diárias. 


Ventimiglia, en la frontera entre Francia e Italia.
Comenzamos, modestamente,  a seguir la huella de PPP.


- chusdominguez.com

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Leis tácitas de Harun Farocki

1. Nunca deixar que um ator atue o próprio despertar. 
2. Sempre valorizar um filme de ficção por suas qualidades documentais. 
3. Se se mostra alguém preparando a comida, sempre mostrá-lo depois lavando os pratos. 
4. Nunca usar "Fratres" de Arvo Pärt como trilha sonora.
5. Nunca usar imagens dos campos de extermínio sem datá-las com precisão.
6. Se alguém é homem e escreve um roteiro com uma personagem feminina, nunca esquecer que é homem.
7. Nunca esquecer de mostrar o que a câmera não pode filmar.
8. Nunca usar câmera lenta para conseguir efeitos poéticos.
9. Se há um novo regime de imagens no mundo, nunca esquecer de mostrá-lo.
10. Nunca fazer primeiríssimos planos de rostos falando.
11. Sempre fazer listas.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

corpo

esquecido: o corpo e a razão do corpo, o seu mover e o seu esperar. abandonado ou adiado, despido de tempo e de memória num secreto repouso de água na pedra. quase silencioso, quase subterrâneo. corpo suspenso, corpo preso por cordas cortadas. fundeado em dias sem horas. à espera duma razão, fugindo duma razão. corpo construído. sucessivo corpo. barco, veleiro, navio. corpo ilha. corpo corrente. atravessado, trespassado, guardado. 

oh! caligrafia dos amantes, sílaba longa dos loucos. túmulo e altar. pira de sacrifícios e de graças, lugar do todo e do nada, do cheio e do vazio.

gil t. sousa


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

V

E assim aqui estou, no meio caminho, tendo passado vinte anos -
...vinte anos muito mal gastos, os anos de l'entre deux guerres -
A tentar aprender a usar as palavras, e cada tentativa
É um inteiro recomeço e um diferente tipo de fracasso
Pois apenas se aprendeu a tirar o melhor das palavras
Para aquilo que já não tem de se dizer, ou para a maneira pela qual
Já não se está na disposição de o dizer. E assim cada investida
É um novo começo, uma incursão no inarticulado
Com equipamento gasto sempre pronto a deteriorar-se
Na desordem geral de sentimentos imprecisos,
De indisciplinados pelotões de emoção. E o que há para conquistar,
Por força e obediência, já antes foi descoberto
Uma vez ou duas, ou várias vezes, por homens que não podemos ter esperança
De emular - mas não se trata de competição -
Trata-se apenas da luta para recuperar o que se perdeu
E achou e perdeu outra e outra vez: e agora, sob condições
Que parecem desfavoráveis. Mas talvez nem ganho nem perda.
Para nós, há apenas a tentativa. O resto não é connosco.

A casa é de onde se começa. À medida que envelhecemos
O mundo fica mais estranho, o padrão mais complicado
De mortos e de vivos. Não o momento intenso
Isolado, sem antes nem depois,
Mas uma vida inteira a arder em cada momento
E não a vida inteira de apenas um homem
Mas de velhas pedras que não podem ser decifradas.
Há um tempo para o anoitecer sob a luz das estrelas,
Um tempo para o anoitecer sob a luz do candeeiro
(A noite com o álbum das fotografias).
O amor é mais aproximadamente ele próprio
Quando o aqui e o agora deixam de importar.

Os homens quando velhos deviam ser exploradores
Aqui ou acolá não importa
Temos de estar quietos e quietos mover-nos
Para uma outra intensidade
Para uma ulterior união, um comungar mais fundo
Através do frio escuro e da desolação vazia,
O grito da onda, o grito do vento, as vastas águas
Da procelária e do golfinho. No meu fim está o meu começo.

t. s. eliot

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Há 2 anos atrás, a caminho do Brasil.


Diário 1 . o principio da incerteza

Estou sentada naquele banco apertado de avião. Rodeada de pessoas com sentidos e propósitos de viagem diferentes. Estou muito cansada mas sem sono. 

O homem à minha frente está de pé… postura assumida por quem tem nas viagens um estado repetido e faz questão que todos saibam disso. Ele nem pensa que está sem chão, a centenas de kms de altitude. Eu, sinto o contrário. Aliás, esse é o único pensamento que não me sai da cabeça, desde que entrei no avião e me sentei no banco apertado. 

Ele também viaja sozinho mas conversa com pessoas que nunca viu, claro, devido ao hábito e à quase banalidade de estar em tal posição espacial. Está visivelmente stressado e partilha isso com os estranhos que acabou de conhecer. Conta que ainda tem que apanhar um vôo para Salvador às 15h… está preocupado porque com o atraso no primeiro embarque não sabe se haverá tempo para fazer escala e chegar ao seu destino final. Oiço a conversa porque também eu vou para Salvador, embora esse não seja o meu último destino. Será que fala do mesmo vôo que eu? Mas há muito tempo para fazer a escala, penso. Por outro lado, olho para aquele homem de tez brilhante do suor que lhe escorre pelo rosto de barba grisalha e pergunto-me, no meio da incerteza que se instalou em mim desde que deixei Portugal, se não deveria, eu também, estar assim stressada.

Deixei de ter certezas; até nas mais pequenas coisas eu não tenho certezas. Não sei nada. Ainda não cheguei ao Brasil mas já saí de Portugal: eu agora não sei nada. 

Ele viaja de pé no avião, conversa com estranhos naturalmente, fala brasileiro e vai para Salvador… Ele agora é que sabe. Eu só estou no ar, sem chão, a voar, sem fronteira. 

Ainda não cheguei mas sei que já saí...

(julho 2011)