sexta-feira, 17 de novembro de 2017

sobre o intenso agora

É uma beleza perceber que o luto que começou a ser feito em Santiago pode agora chegar a termo. Em Santiago, João (Moreira Salles) começava a problematizar o excesso de controle, a auto-inquirir sua posição no topo da pirâmide social brasileira e a interrogar a natureza das imagens, mas tudo ainda se dava dentro de um espaço confinado e rígido, do cinema e do apartamento.
Já agora ele pode sair, ir ao encontro das imagens do mundo, questioná-las, recordá-las e reinventá-las, mas de maneira difusa, errática, livre e não menos densa e precisa, como uma aventura. A partir da heterogeneidade dos arquivos, ele pode imaginar, apesar de tudo. E a imaginação, talvez a mais política das faculdades, o permite imaginar uma mãe, supor seu olhar, conferir a ela uma subjetividade colocando-a, pela forma como é tocada por aquilo que lhe é estranho, no compasso das mais profundas revoluções -- ela que parecia tão distante de tudo aquilo...
Seria o feminino o espaço do inacabado, da opacidade, do descontrole, da desordem da vida, da ausência de hierarquia, do encantamento, da alegria e também da melancolia? Seria Maio de 68 a primeira revolução "feminina" da história, a primeira revolução a colocar a experiência, o agora e a imaginação na ordem do dia?
(Quem diz que o filme é conformista, além de estar cego, não compreendeu nada do que se passou ao longo do século XX. Maio de 1968 pode não ter gerado uma sociedade mais justa, mas gestou um mundo em que a experiência singular de cada indivíduo -- de uma mãe preocupada com seu filho longe de casa a um autor de cinema -- pode ser levada em conta, ainda que sob todos os riscos de uma subjetividade hipostasiada.)
(...) Toda a mãe é imaginada. Todo individuo porta em si a própria revolução (...).

Talvez não haja nada mais importante e revolucionário do que ser capaz de fazer o luto, dos pais, das ilusões perdidas e de um projeto de país. Pois sem a efetividade do luto, pessoal, público e político, nada mais se pode inventar e colocar no lugar.

Ilana Feldman

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