Só mais um dia,
um dia luminoso e barulhento
por mim a dentro,
um dia bastaria,
em prosa que fosse.
Mas dá-me para a melancolia
para a limpeza, para a harmonia,
impacientam-me as migalhas
de pão na mesa, as falhas
da pintura do tecto,
as vozes das visitas, despropositadas,
sinto-me sujo como um objecto,
desapegado, desarrumado.
Trocaria bem esse dia
por um pouco de arrumação
- no quarto e no coração.
Que belas imagens, que belo texto!
ResponderEliminarPermito-me um poema resposta ainda a tomar forma:
Hoje decidi limpar a casa.
Armei-me com luvas de borracha,
Uma vassoura, um balde, um aspirador
Um pano e ainda uma esfregona!
Estava pronto para a batalha do pó e dos ácaros,
Mas com o que me deparei foi bem mais e melhor:
Em baixo do sofa encontrei memórias de um outro eu
Uma amalgama de pelos, crostas, purpurina e gorilas atracados entre os tacos do chão
Entre as almofadas de um lado uma lembrança do teu cheiro,
do outro o cheiro do meu cachorro,
misturados numa entidade da minha imaginação
Ao varrer, juntei o pó que deixei acumular e os pedaços
De quem um dia já quis ser.
Entre os livros descobri poemas escondidos do meu coração
(aqueles que escrevi para ti, pra ele e pra ela e, também, para mim)
Estes Pequenos souvenirs de quem já fui e que me lembram quem um dia serei
Dentro de uma caixa encontrei dores e felicidades dobradas, cuidadosamente arrumadas.
Algumas queimei
Outras guardei para mais tarde.
Limpar a casa limpa-me a alma
Limpar é poder. Limpar dá-me o poder.
Desperta a nostalgia, solidifica a saudade.
Reconstrói o passado,
um pequeno Frankenstein do que um dia foi sonhado.
Felizmente a memória é um lugar tranquilo.
Com o tempo a dor se vai.
(Havia uma frase da Liv Ullman algo como isto:
- Posso agora caminhar sobre estas memórias pois os pés que as percorrem já não são os mesmos.)
------------------------------
Penteio os cabelos
(Soube tão bem varrer todo este passado)
Queimo um pau santo,
(o cheiro do futuro)
O cheiro do presente.
A casa voltou a ser uma página em branco, pronta para o que vier.
Hoje colhi os cacos de quem não fui,
Pintei as unhas e calcei as botas de quem serei
E agora ando em direção ao desconhecido
Expus os cheiros da infancia,
Coloquei as fotografias da minha mãe na sala
Dobrei as cuecas brancas do meu pai,
Tudo pronto para fechar a porta da arrecadação.
Finalmente, abri as janelas para arejar e percebi que o cheiro da primavera já bailava no ar.
E, assim, lembrei-me que também em mim
o inverno já terminou.