segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Só mais um dia

Só mais um dia, um dia luminoso e barulhento por mim a dentro, um dia bastaria, em prosa que fosse. Mas dá-me para a melancolia para a limpeza, para a harmonia, impacientam-me as migalhas de pão na mesa, as falhas da pintura do tecto, as vozes das visitas, despropositadas, sinto-me sujo como um objecto, desapegado, desarrumado. Trocaria bem esse dia por um pouco de arrumação - no quarto e no coração.

1 comentário:

  1. Que belas imagens, que belo texto!
    Permito-me um poema resposta ainda a tomar forma:


    Hoje decidi limpar a casa.
    Armei-me com luvas de borracha,

    Uma vassoura, um balde, um aspirador
    Um pano e ainda uma esfregona!
    Estava pronto para a batalha do pó e dos ácaros,
    Mas com o que me deparei foi bem mais e melhor:

    Em baixo do sofa encontrei memórias de um outro eu
    Uma amalgama de pelos, crostas, purpurina e gorilas atracados entre os tacos do chão
    Entre as almofadas de um lado uma lembrança do teu cheiro,
    do outro o cheiro do meu cachorro,
    misturados numa entidade da minha imaginação
    Ao varrer, juntei o pó que deixei acumular e os pedaços
    De quem um dia já quis ser.
    Entre os livros descobri poemas escondidos do meu coração
    (aqueles que escrevi para ti, pra ele e pra ela e, também, para mim)
    Estes Pequenos souvenirs de quem já fui e que me lembram quem um dia serei


    Dentro de uma caixa encontrei dores e felicidades dobradas, cuidadosamente arrumadas.
    Algumas queimei
    Outras guardei para mais tarde.


    Limpar a casa limpa-me a alma
    Limpar é poder. Limpar dá-me o poder.
    Desperta a nostalgia, solidifica a saudade.
    Reconstrói o passado,
    um pequeno Frankenstein do que um dia foi sonhado.


    Felizmente a memória é um lugar tranquilo.
    Com o tempo a dor se vai.

    (Havia uma frase da Liv Ullman algo como isto:

    - Posso agora caminhar sobre estas memórias pois os pés que as percorrem já não são os mesmos.)


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    Penteio os cabelos
    (Soube tão bem varrer todo este passado)
    Queimo um pau santo,
    (o cheiro do futuro)
    O cheiro do presente.
    A casa voltou a ser uma página em branco, pronta para o que vier.


    Hoje colhi os cacos de quem não fui,
    Pintei as unhas e calcei as botas de quem serei
    E agora ando em direção ao desconhecido


    Expus os cheiros da infancia,
    Coloquei as fotografias da minha mãe na sala
    Dobrei as cuecas brancas do meu pai,
    Tudo pronto para fechar a porta da arrecadação.


    Finalmente, abri as janelas para arejar e percebi que o cheiro da primavera já bailava no ar.
    E, assim, lembrei-me que também em mim
    o inverno já terminou.

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