sábado, 2 de novembro de 2019

ANDANTE


I
Soube-me sempre a destino a minha vida.
Por isso, ainda hoje que
todo o sal secou no fundo do mar
e o mar é uma câmara, ainda hoje a ignoro
—quando olho, surpreso, a sabedoria dos gestos
com que as crianças começam a sentir-se reais.

II
Ternamente,
as crianças vêem-se iluminadas dos dois lados,
e o que era liso acabou.
Todos nós vimos
o enrugar-se o céu para assentar na terra.

III
Viemos e crescemos
julgando que era extenso um abandono impassível.
E, mesmo julgando,
procurámos sinais de transigência,
golpes circulares e lentos num papel perdido...
Estas ruas, porém, foram encurtando com o tempo.

IV
Não é de um medo enorme que ressurge a vida?
As crianças nascem com uma coragem que perdem.
As mães provocam-nas em si com uma coragem de carne.
E os homens levam-nas consigo sem as conhecer.



Jorge de Sena

1 comentário:

  1. bonito.
    penso que o tempo diminuí o tamanho das coisas para que as coisas caibam na memória. a rua da casa onde brinquei já não é vasta, o quarto da casa dos pais já não cabe uma correria, até os adultos foram diminuindo com o tempo e agora, adulto, o próprio tempo parece mais curto.

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