quarta-feira, 22 de abril de 2020

Escrito nas escadas do Harlem porto-riquenho

Há uma verdade que limita o homem 
Uma verdade que o impede de ir mais além 
O mundo está a mudar 
O mundo sabe que está a mudar
Funda é a tristeza deste tempo
Os velhos trazem a perdição estampada no rosto
Os jovens treslêem o seu destino nesse rosto 
Essa é a verdade
Embora não seja toda a verdade

A vida tem sentido 
E eu não conheço esse sentido
Mesmo quando me pareceu desprovida de sentido
Fiz figas e rezei  e fui buscando um sentido
Nem tudo era poesia travessa
Havia contas a pagar
Ao convocar a Morte e Deus 
Aceitei o desafio tresloucado de os enfrentar
A morte revelou-se me desprovida de sentido sem a vida 
Sim o mundo está a mudar
Embora a morte continue igual
Afasta o homem da vida
O único sentido que ele conhece
E costuma ser uma coisa triste
Essa morte

Consegui que uma inocência que uma seriedade 
Que um humor me salvassem da filosofia amadora
Sou capaz de contradizer as minhas crenças
Sou capaz capaz
Pois desejo conhecer o sentido de tudo
E porém eis-me aqui como destroço 
A queixar-me: Ah que responsabilidade
Deposito sobre os teus ombros Gregory
Morte e Deus
Difícil difícil é difícil

Aprendi aue a vida não era um sonho
Aprendi que a verdade enganava 
O homem não é Deus
A vida é um século 
A morte é um instante


Gregory Corso

terça-feira, 21 de abril de 2020

Canção

O peso do mundo
                é amor.
Sob o fardo
                da solidão,
sob o fardo 
                do descontentamento


                o peso,
o peso que carregamos
                é amor.


Quem pode negar?
                Toca
em sonhos
                o corpo,
constrói
                em pensamento
um milagre,
                angustia-se
na imaginação
                até nascer
no humano – 


espreita pelo coração
                ardendo puramente –
pois o fardo da vida
                é amor,


carregamos porém o fogo
                com fadiga,
temos pois de descansar
nos braços do amor
                enfim,
temos de descansar nos braços
                do amor.


Não há descanso
                sem amor,
  não há sono
                sem sonhos
de amor – 
loucos ou indiferentes
que sejamos, obcecados 
                com anjos ou máquinas,
o derradeiro desejo
                é amor
– não pode amargar
                não se pode negar,
 não se pode conter
                se negado:


pesa de mais este peso


                – tem de se dar
sem rendimento
                como se dá
o pensamento
                na solidão
na suprema excelência
                do seu excesso.


Os corpos quentes
                brilham juntos
no escuro,
                move-se a mão
para o centro
                da carne,
treme a pele
                de felicidade
e vem-se a alma
                exuberante aos olhos – 


sim, sim,
                era isso que eu
queria,
                que eu sempre quis,
eu sempre quis
                regressar
ao corpo
                onde eu nasci.


San Jose, 1954 


allen ginsberg
uivo e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2014

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Um poema para os corações negros

Pelos olhos de Malcolm, quando quebraram a cara
de um branco estúpido.
Pelas mãos de Malcolm, erguidas, para nos abençoar,
negros e fortes na sua imagem de nós mesmos.
Pelas palavras de Malcolm, dardos de fogo, vitoriosas,
ferindo incansáveis, palavras suspensas
sobre o mundo, mudando-o como podem.
Ele disse, por isso foi assassinado, por dizer
e sentir, sendo e mudando.
Todos juntos no seu coração ardente.
Pelo coração de Malcolm elevando-nos sobre
as cidades imundas.   
Pelos seus passos e seu jeito e suas palavras
aos monstros cinzentos do mundo. 
Pelas súplicas de Malcolm por sua dignidade,
negros, por suas vidas, para encher seus
espíritos  de confiança.
Por tudo dele, morto e  já partido, sumido de
nós, e tudo dele ligado a nós para
nossa crença Deus negro de nosso tempo.
Por tudo dele e de vocês mesmos, ergam os
olhos negros, parem de gaguejar e andar cabisbaixos,
levantem a cabeça e parem de choramingar
e se humilhar, por tudo dele.
Pelo grande Malcolm, um príncipe da terra,
não nos deixemos esmorecer. 
Até nos vingarmos, nós próprios, por sua morte
(estúpidos animais que o mataram), não nos deixemos
tomar fôlego, pois se cairmos os brancos nos chamarão
                                                                       de bichas
             até o fim do mundo.



LeRoi Jones

sábado, 11 de abril de 2020

Cartas que Tarkosvki recebeu, enviadas por espectadores dos seus filmes

Uma engenheira civil de Leningrado escreveu-me:

"Vi seu filme, O EspelhoAssisti até ao fim, apesar da grande dor de cabeça que me foi provocada na primeira meia hora pelas tentativas de analisá-lo, ou de ao menos compreender alguma coisa do que nele se passava, alguma relação entre os personagens, os acontecimentos e as recordações. Nós, pobres espectadores, vemos filmes que são bons, maus, muito maus, banais ou extremamente originais. Porém, no caso de qualquer um desses filmes, podemos sempre entender, ficar entusiasmados ou entediados, conforme o caso, mas o que dizer do seu filme?!"

Um engenheiro de equipamentos de Kalinin também ficou terrivelmente indignado:

"Há meia hora que saí do cinema, onde assisti ao seu filme, O EspelhoPois muito bem, camarada realizador!! Também o viu? A impressão que tenho é a de que há algo de doentio nesse filme. Desejo-lhe todo o sucesso na sua carreira, mas asseguro-lhe que não precisamos de filmes assim."

Outro engenheiro, desta vez de Sverdlovsk, foi incapaz de conter a sua profunda antipatia:

"Que vulgaridade, que porcaria! Bah, que revoltante! De qualquer forma, creio que seu filme não irá mesmo fazer muito sucesso. Com toda a certeza não conseguiu atingir o público, e, afinal, é isso o que importa.Este homem chega mesmo a pensar que os responsáveis pela indústria cinematográfica devem ser chamados a justificar-se. "É de admirar que as pessoas responsáveis pela distribuição dos filmes aqui na União Soviética deixem passar tais disparates.

Para fazer justiça à administração dos cinemas, tenho de dizer que "tais disparates" só muito raramente eram permitidos — em média, uma vez a cada cinco anos. Quanto a mim, ao receber cartas como esta, costumava desesperar-me: afinal, para quem é que eu estava a trabalhar, e por quê?

O que me reconfortava um pouco era um outro tipo de espectador, com as suas cartas cheias de incompreensão mas que, ao menos, se percebia o desejo verdadeiro de compreender a minha maneira de ver as coisas. Por exemplo:

"Certamente não sou o primeiro, nem serei o último, a escrever-lhe completamente desnorteado, pedindo ajuda para entender O EspelhoEm si, os episódios são muito bons, mas como ligá-los entre si?"


De Leningrado, outra mulher escreveu: 


"O filme é tão diferente de tudo o que já vi, que não estou preparada para entendê-lo, tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo. Você poderia explicá-lo? Não que se possa dizer que eu nada entenda de cinema em termos gerais mas vi os seus filmes anteriores, A Infância de Ivan Andrei Rubleve entendi-os bem. Mas, quanto a O Espelho: antes da projeção do filme, seria necessário preparar os espectadores  através de algum tipo de introdução. Depois de vê-lo, ficamos irritados com a nossa impotência e a nossa obtusidade. Com todo respeito, Andrei, se não lhe for possível responder detalhadamente à minha carta, diga- me ao menos onde posso ler alguma coisa sobre o filme."



Infelizmente, não havia quaisquer leituras que eu pudesse recomendar a estes correspondentes; não existiam publicações de nenhum tipo sobre O Espelho, a menos que se considere como tal a condenação pública do meu filme como inadmissivelmente "elitista", feita pelos meus colegas numa reunião do "Instituto de Cinematografia do Estado e do Sindicato dos Cineastas", e publicada na revista Arte do Cinema.

(...)

Um dos membros do Instituto de Física da Academia de Ciências enviou-me uma nota publicada no jornal mural do Instituto:


"O aparecimento do filme de Tarkovski, EspeIhodespertou grande interesse no IFAC, como de resto, em toda a cidade de Moscovo. Não foi possível a todos que assim o desejavam encontrar-se com o realizador (como também se viu impossibilitado o autor desta nota). Nenhum de nós pode entender como Tarkovski conseguiu, através dos recursos oferecidos pelo Cinema, criar uma obra de tal profundidade filosófica. Habituado ao facto de que cinema é sempre história, ação, personagens e o costumeiro happy endingo público também tenta encontrar estes componentes no filme de Tarkovski, e, ao não os encontrar, sente-se frequentemente desapontado. De que fala esse filme? De um homem. Não daquele homem em particular, cuja voz ressoa por trás da tela, representado por Innokenti Smoktunovsky. É um filme sobre ti, o teu pai, o teu avô, sobre alguém que viverá depois de ti, e que, ainda assim, serás 'tu'. Sobre um homem que vive na terra, que é parte da terra, a qual, por sua vez, é parte dele. É sobre o facto de que um homem responde com a vida, tanto ao passado quanto ao futuro. Deve ver-se este filme com simplicidade e ouvir a música de Bach e os poemas de Arseni Tarkovski; vê--lo da mesma maneira como se olha para as estrelas ou para o mar, ou ainda, como se admira uma paisagem. Não há aqui nenhuma lógica matemática, pois esta não é capaz de explicar o que é o homem ou em que consiste o sentido de sua vida."


Retirado do livro "Esculpir o Tempo" de Andrei Tarkovski