sábado, 11 de abril de 2020

Cartas que Tarkosvki recebeu, enviadas por espectadores dos seus filmes

Uma engenheira civil de Leningrado escreveu-me:

"Vi seu filme, O EspelhoAssisti até ao fim, apesar da grande dor de cabeça que me foi provocada na primeira meia hora pelas tentativas de analisá-lo, ou de ao menos compreender alguma coisa do que nele se passava, alguma relação entre os personagens, os acontecimentos e as recordações. Nós, pobres espectadores, vemos filmes que são bons, maus, muito maus, banais ou extremamente originais. Porém, no caso de qualquer um desses filmes, podemos sempre entender, ficar entusiasmados ou entediados, conforme o caso, mas o que dizer do seu filme?!"

Um engenheiro de equipamentos de Kalinin também ficou terrivelmente indignado:

"Há meia hora que saí do cinema, onde assisti ao seu filme, O EspelhoPois muito bem, camarada realizador!! Também o viu? A impressão que tenho é a de que há algo de doentio nesse filme. Desejo-lhe todo o sucesso na sua carreira, mas asseguro-lhe que não precisamos de filmes assim."

Outro engenheiro, desta vez de Sverdlovsk, foi incapaz de conter a sua profunda antipatia:

"Que vulgaridade, que porcaria! Bah, que revoltante! De qualquer forma, creio que seu filme não irá mesmo fazer muito sucesso. Com toda a certeza não conseguiu atingir o público, e, afinal, é isso o que importa.Este homem chega mesmo a pensar que os responsáveis pela indústria cinematográfica devem ser chamados a justificar-se. "É de admirar que as pessoas responsáveis pela distribuição dos filmes aqui na União Soviética deixem passar tais disparates.

Para fazer justiça à administração dos cinemas, tenho de dizer que "tais disparates" só muito raramente eram permitidos — em média, uma vez a cada cinco anos. Quanto a mim, ao receber cartas como esta, costumava desesperar-me: afinal, para quem é que eu estava a trabalhar, e por quê?

O que me reconfortava um pouco era um outro tipo de espectador, com as suas cartas cheias de incompreensão mas que, ao menos, se percebia o desejo verdadeiro de compreender a minha maneira de ver as coisas. Por exemplo:

"Certamente não sou o primeiro, nem serei o último, a escrever-lhe completamente desnorteado, pedindo ajuda para entender O EspelhoEm si, os episódios são muito bons, mas como ligá-los entre si?"


De Leningrado, outra mulher escreveu: 


"O filme é tão diferente de tudo o que já vi, que não estou preparada para entendê-lo, tanto no que diz respeito à forma quanto ao conteúdo. Você poderia explicá-lo? Não que se possa dizer que eu nada entenda de cinema em termos gerais mas vi os seus filmes anteriores, A Infância de Ivan Andrei Rubleve entendi-os bem. Mas, quanto a O Espelho: antes da projeção do filme, seria necessário preparar os espectadores  através de algum tipo de introdução. Depois de vê-lo, ficamos irritados com a nossa impotência e a nossa obtusidade. Com todo respeito, Andrei, se não lhe for possível responder detalhadamente à minha carta, diga- me ao menos onde posso ler alguma coisa sobre o filme."



Infelizmente, não havia quaisquer leituras que eu pudesse recomendar a estes correspondentes; não existiam publicações de nenhum tipo sobre O Espelho, a menos que se considere como tal a condenação pública do meu filme como inadmissivelmente "elitista", feita pelos meus colegas numa reunião do "Instituto de Cinematografia do Estado e do Sindicato dos Cineastas", e publicada na revista Arte do Cinema.

(...)

Um dos membros do Instituto de Física da Academia de Ciências enviou-me uma nota publicada no jornal mural do Instituto:


"O aparecimento do filme de Tarkovski, EspeIhodespertou grande interesse no IFAC, como de resto, em toda a cidade de Moscovo. Não foi possível a todos que assim o desejavam encontrar-se com o realizador (como também se viu impossibilitado o autor desta nota). Nenhum de nós pode entender como Tarkovski conseguiu, através dos recursos oferecidos pelo Cinema, criar uma obra de tal profundidade filosófica. Habituado ao facto de que cinema é sempre história, ação, personagens e o costumeiro happy endingo público também tenta encontrar estes componentes no filme de Tarkovski, e, ao não os encontrar, sente-se frequentemente desapontado. De que fala esse filme? De um homem. Não daquele homem em particular, cuja voz ressoa por trás da tela, representado por Innokenti Smoktunovsky. É um filme sobre ti, o teu pai, o teu avô, sobre alguém que viverá depois de ti, e que, ainda assim, serás 'tu'. Sobre um homem que vive na terra, que é parte da terra, a qual, por sua vez, é parte dele. É sobre o facto de que um homem responde com a vida, tanto ao passado quanto ao futuro. Deve ver-se este filme com simplicidade e ouvir a música de Bach e os poemas de Arseni Tarkovski; vê--lo da mesma maneira como se olha para as estrelas ou para o mar, ou ainda, como se admira uma paisagem. Não há aqui nenhuma lógica matemática, pois esta não é capaz de explicar o que é o homem ou em que consiste o sentido de sua vida."


Retirado do livro "Esculpir o Tempo" de Andrei Tarkovski

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