domingo, 7 de outubro de 2018

A Lula

Presidente, o Brasil vive um momento muito difícil. A ameaça do fascismo, quem diria, presente nas ruas e nas praças. No seu aniversário, além do desejo de muitos votos em Haddad 13 no dia de amanhã, desejo que possamos ter um futuro democrático, sem essa onda de violência e ódio descabida. Ao senhor, desejo diretamente a justiça. Sua liberdade. Sua saúde, sua paz.

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Autonomia

Autotomia
(WISLAWA SZYMBORSKA)

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Cartilha da Cura

As mulheres e as crianças são as primeiras que desistem de afundar navios.


Ana Cristina Cesar

domingo, 2 de setembro de 2018

o aprendizado da violência

- Só uma última questão: é preciso levar alguma coisa para a revolução?
- Cada um leva o que sentir ser necessário e o que for exigido pelo mais profundo do seu ser.
- Como?
- Leve uma pedra.

Gonçalo M. Tavares

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Coração Selvagem

Havia uma época em que eu andava no bolso com uma frase do livro "Perto do Coração Selvagem", como meu amuleto de sorte: "A cada luta ou descanso, me levantarei forte e bela como um cavalo novo". É muita energia em apenas uma frase.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

fingir

fingimos (porque convém fingir) 
um universo paralelo em que nos amamos 
e nós nos amamos como se realmente nos tivéssemos chegado a amar 
nos amamos por tudo e por nada
nos amamos para sempre, como aquele casal de velhinhos, os meus avós
nos amamos em separação e saudade, como nos filmes e poemas
nos amamos borrifando amor pelo ar e respirando isso
"love loves to love love", conhece?
é tudo mentira. é tudo fingimento.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Ontem
morreu a puta mais velha
da vila. 

Tinha cabelos brancos,
um dente de ouro
e uma foto adolescente.
Nunca reclamou do tempo,
do governo
e do preço das coisas. 

Mas, desconfio, tinha desertos dentro de si. 

Foi vista um dia
Olhando uma nuvem. 
Gostava de um vestido vermelho
que nem lhe servia mais. 
Quando ela morreu
dois negrinhos barrigudos
olhavam o incêndio
num monte de lixo. 

Dizem que foi a paixão
de um importante político
nos anos 40. 

Teve jóias,
roupa nova,
convite pra festas
e pneumonia. 

Sobraram-lhe as rugas:
michê de fim de expediente.
Votou em Getúlio
e sempre respeitou a sexta-feira santa 
Paixão ela teve duas
Um manco de bigodinho
e um outro que voltou pro Norte. 

O esmalte no dedão descascava
Como descascam certos dias
e a gente não vê. 

Morreu só
a puta mais velha da vila. E uma doença
que quase a matou. Um cara perguntou
se ela era feliz. Outro, por que não casou.
E ela sabia
que um Domingo
rodeada de netos no subúrbio
é também uma prisão. 
Preferiu a cerveja morna
e o São Jorge sobre a cômoda. 

Morreu velha essa puta na vila.
Sem saber a idade ao certo
mas dos setenta chegou perto. 
Morreu numa tarde anônima
com criança olhando incêndio
e cachorro magro
passeando na vila. Tarde comum
com tédio de vestido vermelho
e de varal de vila.
o mesmo tédio
de que é feita a fúria da primavera
e a esperança das putas.


Marçal Aquino

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Presentes


[Aglaja Veteranyi]

Um homem parou na beira de uma mulher e atirou uma pedra
para dentro dela.

4 anos depois a mulher disse: eu amo pedras.
4 anos depois o homem disse: quero minhas pedras de volta.
A mulher deixou-se operar.
O homem embrulhou as pedras em papel de seda vermelho e
deu-as de presente à mulher.
A mulher deu de presente ao homem a conta do hospital.
O homem deu de presente à mulher de 1 a 2 filhos.
Os filhos deram de presente ao casal 1,6 kg de alegria.
O casal, de alegria, pulou da janela.

A repartição de enterros deu de presente aos filhos um caixão duplo.
Os filhos deram de presente aos seus filhos a história de seus alegres pais.
Um filho deu a outro filho 1 lágrima.
O filho chorou-se todo e afogou-se no choro.

120 anos depois uma mulher parou na beira de um homem e
atirou uma pedra para dentro dele.
O homem disse: não gosto de pedras.
A mulher tentou com um pedaço de pau.
A felicidade deles tornou-se insuportavelmente bela.

Trad. Fabiana Macchi

quinta-feira, 14 de junho de 2018

O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.


Fremando Pessoa

segunda-feira, 11 de junho de 2018

O Marinheiro

A MESMA — Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz tanta pena...
SEGUNDA — Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos tido.
TERCEIRA — Não. Talvez o tivéssemos tido…
PRIMEIRA — Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão falso de nos esquecermos!           ... Se passeássemos?...
TERCEIRA — Onde?
PRIMEIRA — Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar sonhos.
TERCEIRA — De quê?
PRIMEIRA — Não sei . Porque o havia eu de saber?

(uma pausa)

SEGUNDA — Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora era menos triste. Ao        entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu não fiava; olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse...
PRIMEIRA — Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de outras terras é belo?
SEGUNDA — Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca...

(uma pausa)

PRIMEIRA — Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado?
SEGUNDA — Não, não dizíamos.
TERCEIRA — Por que não haverá relógio neste quarto?
SEGUNDA — Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?
PRIMEIRA — Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma... Estou procurando não olhar para a janela.. Sei que de lá se vêem, ao longe, montes... Eu fui feliz para além de montes, outrora... Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem... Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar... Foi longe daqui que isto pôde ser... Quando virá o dia?...
TERCEIRA — Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre, sempre, sempre...


(...)


       Fernando Pessoa in Poemas Dramáticos

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Segredo

A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.

Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 12 de março de 2018

É como se a infância não fosse um tempo

É como se a infância não fosse um tempo 
mas um lugar
com seus cumes seus esconderijos
suas pequenas clareiras
um lugar, aquele onde cometemos 
nosso primeiro crime
há quem tenha matado um coelho 
há quem tenha matado um sapo 
há quem tenha matado um cão
há quem tenha mentido perseguido 
destroçado
deixado morrer
por capricho
de minha parte matei uma criança: 
uma menina
morreu em mim
por onde vou carrego
o seu cadáver
e a forma exata do seu corpo 
repousa no meu corpo
como num vestido
largo demais

Ana Martins Marques

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Só mais um dia

Só mais um dia, um dia luminoso e barulhento por mim a dentro, um dia bastaria, em prosa que fosse. Mas dá-me para a melancolia para a limpeza, para a harmonia, impacientam-me as migalhas de pão na mesa, as falhas da pintura do tecto, as vozes das visitas, despropositadas, sinto-me sujo como um objecto, desapegado, desarrumado. Trocaria bem esse dia por um pouco de arrumação - no quarto e no coração.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A Cela

A Cela é uma aldeia na Galiza quase desaparecida da face da terra com um casal, Júlio e Dourinda, numa tarde sem pretensões e a montanha bem perto. 
Moram quatro famílias na aldeia. Metade ainda está de pé, mas a outra, onde estavam a vida, os homens e os animais, ficou toda encerrada dentro das memórias.
Um rapaz e uma rapariga, que passeavam a ver as pedras sobre as pedras, chegaram ao meio daquele silêncio para tentar ler o que estava escrito no ar. O tempo tinha devorado até as datas. Só ficaram ervas, pedras e um casal quase abandonado pelos ossos e pelos nomes.
E o rapaz e a rapariga escreveram qualquer coisa com um prego bem forte, sobre aquele lugar, como se quisessem ficar lá dentro gravados pelo tempo.




quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

A Ilusão do Migrante

Quando vim da minha terra,

se é que vim da minha terra

(não estou morto por lá?),

a correnteza do rio

me susurrou vagamente

que eu havia de quedar

lá donde me despedia.

Os morros, empalidecidos

no entrecerrar-se da tarde,

pareciam me dizer

que não se pode voltar,

porque tudo é conseqüência

de um certo nascer ali.

Quando vim, se é que vim

de algum para outro lugar,

o mundo girava, alheio

à minha baça pessoa,

e no seu giro entrevi

que não se vai nem se volta

de sítio algum a nenhum.

Que carregamos as coisas,

moldura da nossa vida,

rígida cerca de arame,

na mais anônima célula,

e um chão, um riso, uma voz

ressoam incessantemente

em nossas fundas paredes.

Novas coisas, sucedendo-se,

iludem a nossa fome

de primitivo alimento.

As descobertas são máscaras

do mais obscuro real,

essa ferida alastrada

na pele de nossas almas.

Quando vim da minha terra,

não vim, perdi-me no espaço,

na ilusão de ter saído.

Ai de mim, nunca saí.

Lá estou eu, enterrado

por baixo de falas mansas,

por baixo de negras sombras,

por baixo de lavras de ouro,

por baixo de gerações,

por baixo, eu sei, de mim mesmo,

este vivente enganado,

enganoso.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Que mais há a dizer?
















Esta foto da visita da família Trump ao Vaticano diz tudo: um sorriso encadeado pelo poder, duas mulheres empalhadas, um anfitrião desolado.