terça-feira, 28 de novembro de 2017

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

A minha árvore da cinefilia - ou os sussurros fora de quadro

Foi no tempo em que os animais falavam e eu ainda dormia num quarto alcatifado.
Lá em casa éramos quatro, pessoas quero dizer, mas nessa manhã o meu pai não estava em casa. Eu, ainda deitada na cama, ouvia o meu irmão e a minha mãe a falarem em sussurro fora do quarto. 

Até hoje me pergunto sobre o que falariam. Nunca soube. Mas a sonoridade do sussurro me marcou, no que diz respeito às raízes da minha cinefilia, digo. Eu não sabia, mas era ali que começava a força sonora das imagens dentro da minha cabeça. Ainda hoje fecho os olhos e quase sinto o que senti naquela manhã. Consigo até ver a imagem da cena e o curioso é que não a vejo com um olhar subjetivo. Eu me vejo a mim, deitada, ouvindo os sussurros fora de quadro. É um terceiro olhar que vê a cena. A minha câmera se posiciona fora de mim. Mas isso, eu só soube anos mais tarde. Ali, naquele momento, eu estava só a ser marcada sonoramente por uma cena, um sentimento, um sussurro. 

Os meus pais eram muito cinéfilos, embora eu ache que eles não o soubessem. Todos os domingos eles iam ao cinema e eu ficava com o meu irmão. Na verdade, o meu pai tornou-se cinéfilo quando conheceu a minha mãe. Antes disso não. Antes disso eu nem sei. Não sei do meu pai antes da minha mãe. Mas a minha mãe ia ao Cinema Paris na Domingos Sequeira. Chegava a fazer sessões triplas e até hoje fala dos filmes italianos e franceses que via no fim da década de 60, inicio da década de 70. O engraçado é que a minha mãe fala dos filmes "com" e não dos filmes "de". Tanto que ela sabe muito mais os nomes dos atores do que dos realizadores. Filmes com a Natalie Wood, com a Elizabeth Taylor, com o Paul Newman, que ela tanto gostava.

Depois desse meu primeiro momento cinéfilo interno vieram os momentos cinéfilos propriamente ditos. Os clássicos da Disney, A Música no Coração, Uma Leoa Chamada Elsa (eu avisei que estávamos na época em que os animais falavam). A ida ao cinema foi sempre um acontecimento celebrado com entusiasmo e com o tempo passou a ser cada vez mais frequente. Não consigo lembrar-me muito bem dessas experiências iniciais: como por exemplo, o primeiro filme que vi no cinema. Lembro-me antes quando o cinema me tocou pela primeira vez, e foi por causa da minha mãe. Ela mostrou-me O Esplendor na Relva. Eu já era um pouco mais velha. O filme sempre me acompanhou e fui entendendo-o aos poucos, e de forma diferente, conforme os anos passaram. E o poema final, em sussurro, com a Natalie Wood em primeiro plano (... we will grieve not, rather find strength in what remains behind...), não há um ano que eu não o reveja e não me emocione.

Depois vieram os meus anos de sessão tripla no Monumental ou no King. A partir de 2003 "inventaram" um cartão (Medeia Card) que oferecia a possibilidade de ir ao cinema ver qualquer filme por apenas 15 euros mensais. Como na altura eu tinha um namorado e uma melhor amiga que muito se entusiasmavam com a ideia do cartão, ficou fácil ter visto quase todos os filmes em cartaz entre 2003 e 2010. 

Anos mais tarde, um amigo mostrou-me Victor Erice. E foi ai que eu percebi que eu tinha de fazer cinema. Foi ai, no primeiro plano do El Sur, quando ele nos mostra uma menina na cama, de manhã, acordada escutando os sussurros do pai e da mãe fora de quadro que eu me lembrei do momento sonoro que me marcou desde criança e pensei: a câmera, o terceiro olhar, o som, o sentimento, o sentido. 

A minha cinefilia começou e recomeçou muitas vezes. Quase sempre com uma menina/mulher e vários tipos de sussurro fora de campo.

El Sur, Victor Erice (1983)

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Faz-se luz

Faz-se luz pelo processo 
de eliminação de sombras 
Ora as sombras existem 
as sombras têm exaustiva vida própria 
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela 
intensamente amantes loucamente amadas 
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta 
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem 

Por outro lado a sombra dita a luz 
não ilumina realmente os objectos 
os objectos vivem às escuras 
numa perpétua aurora surrealista 
com a qual não podemos contactar 
senão como amantes 
de olhos fechados 
e lâmpadas nos dedos e na boca 



Mário Cesariny, in "Pena Capital" 

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

sobre o intenso agora

É uma beleza perceber que o luto que começou a ser feito em Santiago pode agora chegar a termo. Em Santiago, João (Moreira Salles) começava a problematizar o excesso de controle, a auto-inquirir sua posição no topo da pirâmide social brasileira e a interrogar a natureza das imagens, mas tudo ainda se dava dentro de um espaço confinado e rígido, do cinema e do apartamento.
Já agora ele pode sair, ir ao encontro das imagens do mundo, questioná-las, recordá-las e reinventá-las, mas de maneira difusa, errática, livre e não menos densa e precisa, como uma aventura. A partir da heterogeneidade dos arquivos, ele pode imaginar, apesar de tudo. E a imaginação, talvez a mais política das faculdades, o permite imaginar uma mãe, supor seu olhar, conferir a ela uma subjetividade colocando-a, pela forma como é tocada por aquilo que lhe é estranho, no compasso das mais profundas revoluções -- ela que parecia tão distante de tudo aquilo...
Seria o feminino o espaço do inacabado, da opacidade, do descontrole, da desordem da vida, da ausência de hierarquia, do encantamento, da alegria e também da melancolia? Seria Maio de 68 a primeira revolução "feminina" da história, a primeira revolução a colocar a experiência, o agora e a imaginação na ordem do dia?
(Quem diz que o filme é conformista, além de estar cego, não compreendeu nada do que se passou ao longo do século XX. Maio de 1968 pode não ter gerado uma sociedade mais justa, mas gestou um mundo em que a experiência singular de cada indivíduo -- de uma mãe preocupada com seu filho longe de casa a um autor de cinema -- pode ser levada em conta, ainda que sob todos os riscos de uma subjetividade hipostasiada.)
(...) Toda a mãe é imaginada. Todo individuo porta em si a própria revolução (...).

Talvez não haja nada mais importante e revolucionário do que ser capaz de fazer o luto, dos pais, das ilusões perdidas e de um projeto de país. Pois sem a efetividade do luto, pessoal, público e político, nada mais se pode inventar e colocar no lugar.

Ilana Feldman

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

the six most beautiful minutes in the history of cinema

Sancho Pança entra num cinema numa cidade de província. Está à procura de Don Quixote e encontra-o sentado à parte, a olhar para 
o écran. A sala está quase cheia; o balcão – que é uma espécie de terraço gigante – está a abarrotar de crianças aos gritos. 
Depois de várias tentativas de se aproximar de Don Quixote, Sancho senta-se com relutância na plateia junto a uma miúda pequena (Dulcineia?), que lhe oferece um chupa-chupa. A projecção do filme começa; é um filme de época: no écran, cavaleiros com arma-
dura atravessam o campo nos seus cavalos. De repente, uma mulher aparece; está em perigo. Don Quichote levanta-se abruptamente, desembaínha a espada, dá uns passos em direcção ao écran e com uma série de espadeiradas começa a destruir a tela. A mulher e os cavaleiros são ainda visíveis no écran mas o rasgão negro aberto pela espada de Don Quixote é cada vez maior, implacavelmente devorando as imagens. No fim, nada resta do écran, só a estrutura de madeira permanece visível. 
O público indignado abandona a sala de cinema, mas as crianças no balcão continuam a aplaudir freneticamente Don Quixote. Só 
a miúda na plateia o olha com desaprovação. O que fazer com as nossas imaginações? Amá-las e crer nelas ao ponto de ter de as destruir e falsificar (talvez seja esse o sentido dos filmes de Orson Welles). Mas quando no final elas se revelam vazias e não cumpridas, quando mostram o nada de que são feitas, só então podemos pagar o preço pela sua verdade e compreender que 
Dulcineia – que salvámos – não nos pode amar.
Giorgio Agamben - the six most beautiful minutes in the history of cinema
P.S.: Ou então podemos brincar com elas, com as imagens, acreditar um pouco, duvidar um pouco, o suficiente para podermos saborear um chupa-chupa em boa companhia. Como Sancho.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Isto é água - a liberdade de ver os outros

(de vez em quando volto a este texto. que maravilha. que apropriado.)

Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:
– Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
– Água? O que é isso?
(...)

O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos. Esse tipo de liberdade tem méritos. 

Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.
Pensem de tudo isso o que quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas. Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência – consciência de que o real e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor – daquilo que devemos lembrar, repetindo sempre: “Isto é água, isto é água.”
É extremamente difícil lembrar disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro."

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Segredo

A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

sobre as desilusões

A gente fez pouco.
A gente era mais.

A gente tinha que ter feito mais.

A gente tinha que ter viajado mais.
A gente tinha que ter ido até ao Pantanal.
A gente tinha de ter visto a Bolívia.
A gente tinha que ter filmado a Bolívia.

A gente tinha que ter transado na neve, 
transado de novo debaixo da lua cheia, 
com as ondas do mar a rolarem 
por baixo de nossos corpos.

Transado na nossa cama com a chuva lá fora.
A gente tinha a nossa cama.
Sabia?

A gente não vai transar nunca mais. 
A gente não vai se beijar nunca mais.
Sabia?

A gente tinha de ter transado mais.
Mais devagar. Mais rápido. Mais silencioso.
Mais amoroso. Menos amoroso.
A gente tinha de ter aprendido nosso beijo.

A gente tinha que ter feito filme.
A gente tinha que ter feito filho.

A gente tinha que ter dado mais a mão, 
mais o braço, mais abraço.

A gente tinha que ter-se ouvido mais.
A gente tinha de ter tido mais calma,
mais calmos, mais diálogos, menos egoísmo.

A gente tinha que ter saído de nós, 
com nós ainda dentro.

A gente tinha que ter sido mais certo.
A gente tinha que se ter magoado menos.

Você não poderia ter ido embora assim.
Você não poderia ter abandonado tudo de nós.
Você não poderia me ter substituído e 
impossibilitado todas as nossas possibilidades futuras.

Você não poderia ter perdido a consideração por mim,
não poderia ter perdido a consideração por nós.

Para quê?
Em nome de quê?
Me dê a mão.
Me dá a mão. 
Mas agora não.
Agora não.

Agora
tudo está morto.
Nosso futuro está morto.
Nosso passado é uma coisa que não sei.
E nosso presente simplesmente não existe.

Não existe.

A gente fez pouco.
A gente era mais.
​E eu te amei tanto.

quarta-feira, 25 de outubro de 2017




Milla, 17 anos, e Leo, não muitos mais, refugiam-se numa pequena cidade no Canal da Mancha. Viver um amor. Inventar uma vida e agarrá-la, custe o que custar e apesar de tudo.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

COMO SE DESENHA UMA CASA

Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim imprudente,
a mãe para sempre morta.

Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.

Protege-te delas, das recordações,
dos seus sócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstração e sem um plano rigoroso. 

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Já não te amo como no primeiro dia.

Já não te amo como no primeiro dia.
Já não te amo.
No entanto continuam em volta dos teus olhos, sempre, estas imensidades que rodeiam o olhar e esta existência que te anima no sono. Continua também esta exaltação que me vem por não saber o que fazer disto, deste conhecimento que tenho dos teus olhos, das imensidades que os teus olhos exploram, por não saber o que escrever sobre isso, o que dizer, e o que mostrar da sua insignificância original. Disso, sei apenas o seguinte: que já não posso fazer nada a não ser suportar esta exaltação a propósito de alguém que estava ali, de alguém que não sabia que vivia e de quem eu não sabia que vivia, de alguém que não sabia viver dizia-te eu, e de mim que o sabia e que não sabia que fazer disso, desse conhecimento da vida que ele vivia, e que também não sabia que fazer de mim.
Dizem que o tempo do pleno verão já se anuncia, é possível. Não sei. Que as rosas já ali estão, no fundo do parque. Que às vezes não são vistas por ninguém durante o tempo da sua vida e que ficam assim ali no seu perfume esquartejadas durante alguns dias e que depois se deixam cair.
Nunca vistas por esta mulher solitária que esquece. Nunca vistas por mim, morrem. Estou num amor entre viver e morrer. É através desta ausência do teu sentimento que reencontro a tua qualidade, essa, precisamente, de me agradares. Penso que apenas me interessa que a vida não te deixe, outra coisa não, o desenvolvimento da tua vida deixa-me indiferente, não pode ensinar-me nada sobre ti, só pode tornar-me a morte mais próxima, mais admissível, sim, desejável. É assim que permaneces face a mim, na doçura, numa provocação constante, inocente, impenetrável.
E tu não sabes.

marguerite duras

segunda-feira, 17 de julho de 2017

CARTA DE HILDA HILST PARA ANTONIO NAUD JÚNIOR

Você me fala do teu poço, Naud, meu baiano bonito, o poço há de ser sempre, às vezes com água mais clarinha, outras vezes com lama, bosta etc. Todos nós que escrevemos somos, queiram os outros ou não, diferentes mesmo, não há jeito. Eu sei que nada tenho a ver com as bestas-feras que habitam o planeta, acho mesmo que somos totalmente diversos, o olho vê mais fundo, a comoção é intensa, maior, fulgurante, tudo nos toca nos comove, nos mata nos aterroriza, o planeta Terra é muito bonito mas ficará amerdalhado totalmente logo mais, tenho profundo desprezo pelos homens políticos de agora de sempre, são todos uns filhos da maior puta, e nós nas mãos deles, cago para todo o Sistema de bosta, pra tudo, não desejo coisas além da solidão muito grande, só aqueles que fazem parte da minha família, isto é os escritores, os de intensidade verdadeira, os que sofrem de piedade e compaixão, as vezes penso que não vou agüentar continuar a existir vendo tanta crueldade, tanto horror. Também meu poço existe, também não tenho nada a ver com cidades, as vezes vou para SP para lançar um livro, como você sabe, chego lá tomo mil porres, ninguém tem nada a dizer, é a mesma baboseira de todos. Naud, nós todos temos problemas, saiba viver com os seus, te foi dado essa coisa tão difícil que é o ato de escrever, o sentir agudo o talento, você é um escritor e pronto, arranje um trabalho de bosta qualquer, meio período, mude-se para um pequeno lugar, você não é casado, não tem filhos para sustentar, escolha o lugar onde quer morar, arranje umas colaborações em revistas jornais, escolha a tua própria vida, faça a sua própria vida...

(25 de dezembro de 1990)

sexta-feira, 14 de julho de 2017

sem essa

Olha, não é nada disso
Embora eu não saiba dizer mais nada
Mas nada além das coisas
Que sempre ficaram caladas
Olha, não é nada disso
É fácil entender
Ele só veio para me dizer adeus
Mas o que eu queria mesmo
Era não ter mais medo de me comover
Mesmo assim fiquei pensando
Que a gente podia viajar
E fazer um álbum de fotografias
Pra depois queimar, lembrar, queimar
Tudo ta indo tão depressa
E não tem mesmo outro jeito
Mas quanto ao resto, não, não
Não é nada disso
Embora eu não saiba dizer mais nada

Jards Macalé

terça-feira, 27 de junho de 2017

Director’s Notes - The Headless Woman

The best thing about traveling by land is to refrain from sleeping and to listen:

-I very seldom have nightmares but when I have them, the main theme in general is that I killed someone.

In my nightmares I am an assassin, and I wake up crying because I no longer believe in God, who could be the only one capable of comforting me with his mercy. The only one I respect. Then I dry my tears and feel that I am a good person, that it has all been a bad dream and that I would never kill anyone.

One night I dreamt that I killed a man with a stick. I got rid of the body but could not get rid of the head. I was in a hurry to go to work, so I put the man’s head on a kitchen shelf. I would take care of it when I came back from work. When I got back in the evening, there was a not from my father on the table. It was that time when my father would come to the city on business and would fly back home in the evening. The note said: “I arranged your kitchen shelf. Love, Daddy.”

Sure enough, the kitchen shelf now had a false bottom and behind it was the well-concealed head of the dead man. I woke up crying – what a great family I have! What unconditional love! I had the urge to call all my siblings, my parents; I could not wait to see them. You should meet them.

Last night I dreamt again. I was coming out of my Grandma’s house after a visit and, when looking for my car keys in my purse, I found a black hand. Dark skin. I realized I killed a black woman. The keys in my purse are not my car keys but the keys to an apartment where I am going and where I know the body is. I woke up crying a screaming.

- Who did the hand belong to?
- I guess the maid’s. Poor thing.
- And you never cry for the people you killed?
- Well, I hardly know them.

This movie was created in the vapor of this conversation.

Lucrecia Martel

quinta-feira, 22 de junho de 2017

caminho

os dias são velhos
enrugados
com linhas tortas

caminho manca.

mas
os dias velhos são
ainda dias

principio, meio e fim
e de novo.

os dias velhos são
cada vez maiores.
sinto-os longos.
os anos
sinto-os curtos.

os dias são
como eu: velha.

sou velha
e não sei até onde vou
ou até onde irei.

dou o melhor de mim para
os meus suspiros
o meu sangue
o meu ar

rasgo-me no que me resta
e pergunto-me o que me resta
um corpo
dois olhos
um coração
as mãos
que me fazem sentir
o outro que existe cada vez menos
que já não existe
que já foi
que já não sinto

as mãos que
eu sou

sou só eu e os meus
dias velhos

POR UM ACASO

POR UM ACASO
Poderia ter acontecido.
Teve que acontecer.
Aconteceu antes. Depois. Mais perto. Mais longe.
Aconteceu, mas não com você.
Você foi salvo pois foi o primeiro.
Você foi salvo pois foi o último.
Porque estava sozinho. Com outros. Na direita. Na esquerda.
Porque chovia. Por causa da sombra.
Por causa do sol.
Você teve sorte, havia uma floresta.
Você teve sorte, não havia árvores.
Você teve sorte, um trilho, um gancho, uma trave, um freio,
um batente, uma curva, um milímetro, um instante.
Você teve sorte, o camelo passou pelo olho da agulha.
Em conseqüência, porque, no entanto, porém.
O que teria acontecido se uma mão, um pé,
a um passo, por um fio
de uma coincidência.
Então você está aí? A salvo, por enquanto, das tormentas em curso?
Um só buraco na rede e você escapou?
Fiquei mudo de surpresa.
Escuta,
como seu coração dispara em mim.

Wisława Szymborska

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Pretérito Imperfeito

(ao meu avô)















Pretérito Imperfeito

Dizias
Fazias
Querias

Tens início e fim no passado
Pretérito Imperfeito

Já não estás.

És palavra memória.
Lembrança.
És Mouraria,
Calções curtos, suspensórios e boina na cabeça.
És muito mar.
(Já vi muito mar)
Comandante

És a casa que construiste
A família que cuidaste
A mulher que amaste
A brisa que deixaste

Mas és
E serás
Presente para sempre.

Agora
Presente imperfeito
Presente coxo
Presente sem corpo
Sem voz

Já não dizes
Já não fazes
Já não queres

Mas és
E serás
Presente para sempre.

És agora
És aqui
És hoje

És os sonhos que terei
A mãe que amo
A família que me sustenta
És parte de mim
E do amor
Que me cerca

Faço de ti
O meu Presente Perfeito
Dentro do teu
Pretérito Imperfeito